Parecer AGU nº 15 de 24/10/2003

Norma Federal - Publicado no DO em 17 dez 2003

Dispõe sobre a promessa de compra e venda de imóvel celebrada por servidor investido em cargo de provimento em comissão, nível DAS-4, com a cumulação de recebimento de custeio de despesas de estadia.

PROCESSO Nº 02000.000133/2003-62

ASSUNTO: Imóvel funcional. Sua distribuição ou custeio de despesas de estadia de servidora investida em cargo de provimento em comissão, nível DAS-4. Promitente vendedora de imóvel residencial: contrato particular de promessa de compra e venda.

EMENTA: O contrato particular de promessa de compra e venda, com sub-rogação de dívida e sem registro, desde que inexistentes a má fé e a tipificação de crime, exclui o promitente vendedor da incidência do inciso I do art. 9º do Decreto nº 980, de 1993, proibitivo da cessão de uso de apartamento funcional a servidor que seja proprietário de imóvel residencial em Brasília.

PARECER

Uma vez investida no cargo de Assessor, código DAS-102.4, com exercício no Gabinete da Ministra de Estado do Meio Ambiente, Terezinha Lúcia Hezim, residente na cidade de Luziânia, Estado de Goiás, postulou o "ressarcimento de despesas com aluguel (moradia), caso o Ministério não disponha de apartamento funcional para atender o meu pleito".

2. A requerente é proprietária do Apartamento nº 412, situado no lote 4 da CSB 5, Taguatinga, Distrito Federal, em relação ao qual, no entanto, celebrou contrato particular de promessa de compra e venda, com sub-rogação de dívida, em 1999, registrado no Cartório de 1º Ofício de Notas de Brasília, no tocante ao qual a requerente e a promissária compradora, à época procuradora da primeira, acordaram que a "outorgada Promitente Compradora fica desde já imitida na posse, direito, ação, uso e gozo do aludido imóvel, passando em conseqüência a responder pelo pagamento de todos os impostos, taxas e demais emolumentos que recai ou venham a recair sobre o aludido imóvel inclusive as prestações do saldo devedor e as despesas de transferência definitiva do aludido imóvel para o seu próprio nome ou de quem indicar" (cláusula quarta do contrato de fls. 16 a 18).

3. No contrato de alienação subseqüente, constante de fls. 19 a 22, inseriu-se a cláusula décima, com o jaez de que ficou "estabelecido o prazo indeterminado para transferência do contrato de financiamento junto à CEF - CAIXA ECONÔMICA FEDERAL".

4. As Consultorias Jurídicas junto ao Ministério do Meio Ambiente e ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão dissentem quanto ao direito à cessão de uso de imóvel funcional ou de custeio de despesas de estadia, em razão de os arts. 9º do Decreto nº 980, de 1993, e 1º do Decreto nº 1.840, de 1996, proporcionarem resultados exegéticos diferentes, conforme se prestigie o método teleológico ou o literal.

II

5. Vejam-se os comandos consubstanciados nesses dispositivos, verbis:

"Art. 9º É vedada a cessão de uso de imóveis residenciais a servidor quando este, seu cônjuge, companheiro ou companheira amparados por lei:

I - for proprietário, promitente comprador, cessionário ou promitente cessionário de imóvel residencial em Brasília, incluída a hipótese de lote edificado sem averbação de construção, exceto no caso do inciso I do art. 5º;

(Redação atribuída pelo Decreto nº 1.803, de 1996).

"Art. 1º O ocupante de cargo do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS, níveis 4, 5 e 6, deslocado para Brasília, que faça jus a moradia funcional, poderá, mediante ressarcimento, ter custeada sua estada às expensas do órgão ou da entidade em que tiver exercício, a partir de sua posse, na hipótese de o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão não dispor de imóvel funcional para alojá-lo, condicionado à existência de disponibilidade orçamentária.

(Redação conferida pelo Decreto nº 4.040, de 2001).

6. A ilação contrária à concessão de uso do imóvel funcional ou à indenização das despesas realizadas com a estadia funda-se em que "não existem nos autos quaisquer outros elementos que possam amenizar a interpretação literal do dispositivo (alude-se ao art. 9º do Decreto nº 980/ 93), de forma a conceder o direito à servidora.

No tocante ao ressarcimento das despesas com moradia, nos termos do Decreto nº 1.840, de 1996, de igual forma não merece prosperar a pretensão da requerente. Pela leitura do dispositivo abaixo descrito, depreende-se que somente àqueles que fazem jus a moradia funcional têm direito ao ressarcimento ..." (cf. o parecer de fls. 37 a 39).

7. Entende-se viável o custeio das despesas de moradia porque, "se a finalidade da norma em comento (refere-se ao art. 1º do Decreto nº 1.840/96) é assegurar o referido benefício ao ocupante de cargo comissionado do grupo DAS, níveis 4, 5 e 6, que tenha se deslocado para Brasília/DF, bem como não passe à condição, ou seja proprietário, promitente comprador, cessionário de imóvel residencial na cidade onde exercerá as atribuições do cargo para o qual foi nomeado, não existe razão para proibir que a requerente perceba tal ressarcimento, tendo em vista que a mesma não tem o direito de usar, gozar e dispor do apartamento nº 412, lote 4 da CSB-05, Taguatinga/DF, além do que o Sr. ..., pelo que se compulsa dos autos, ficou imitido na posse, domínio, direito, ação, uso, gozo e servidão sobre o aludido bem" (v. o parecer de fls. 27 a 31).

8. É indene de dúvida que a peticionária ainda é a proprietária do imóvel referenciado, por isso que o art. 1.245, § 1º, do Código Civil estatui: enquanto "não se registrar o título traslativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel".

9. Num primeiro momento da análise da norma vedante da cessão de uso do imóvel residencial, poder-se-ia entendê-la incidente na espécie, como mera decorrência do seu sentido literal, dado que a interessada é só e só promitente vendedora do imóvel. A rigor, ainda é proprietária do apartamento comprometido contratualmente em promessa de venda.

10. No entanto, a aplicação do inciso I do art. 9º do Decreto nº 980, de 1993, no caso sob comento, com preponderância de sua literalidade, constituirá caso típico de falibilidade da apreciação estritamente gramatical das supramencionadas expressões restritivas, até mesmo em vista da reflexão de Carlos Maximiliano, ultimada no sentido de que a "palavra é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias idéias, valores mais amplos e profundos do que os resultantes da simples apreciação literal do texto" (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Forense, 1979, 9ª ed, p. 36) (Destacou-se).

11. O proprietário, em princípio, "tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa ..." (art. 1.228 do C.C.). Esse pressuposto motivou a proibição do art. 9º do Decreto nº 980: seria contrário ao princípio da moralidade administrativa o Estado ceder o uso de imóvel residencial ao servidor que tem moradia própria.

12. Entretanto, o compromisso de compra e venda gera direitos e obrigações para as partes contratantes e, se nele se integram "os requisitos do contrato de compra e venda, isto é, res, pretium et consensus, está este juridicamente integrado, restando apenas a escritura ou o cumprimento definitivo do contrato" (Vocabulário Jurídico, elaborado por De Plácido e Silva).

13. O promitente comprador adquire o direito real à aquisição do imóvel e, nessa condição, "pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houve recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel" (art. 1.418 do C.C.), capaz de proporcionar a assunção de todos os direitos de domínio e posse. Estes são inerentes a toda e qualquer alienação.

14. Sob outro prisma, observe-se que o art. 9º, § 1º, proíbe a cessão de uso a quem seja também "promitente comprador, cessionário ou promitente cessionário de imóvel residencial em Brasília".

Os efeitos jurídicos do contrato pertinentes ao domínio, posse, uso etc. do imóvel, em casos tais, justificadores dessa vedação aproveitam igualmente para desautorizá-la em relação à promessa de venda, de modo a excluir o promitente vendedor da incidência desse preceptivo. Se é jurídico e judicioso disciplinar que, ao promitente comprador, é proibido ceder o uso, pelas mesmas razões o promitente vendedor deve ser desonerado da incidência da regra impeditiva.

15. A esse propósito, há de ser realçado que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sedimentou-se no sentido de reconhecer a eficácia do compromisso de compra e venda, tanto que assim ementou seus entendimentos: "É admissível a oposição de embargos de terceiros fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro" (Súmula nº 84).

"Sistema Financeiro de Habitação. 'Contrato de gaveta'.

Ação de resolução de compromisso de compra e venda celebrado entre particulares. Descabimento da citação da 'Caixa Econômica Federal'.

- Tratando-se de litígio instaurado entre particulares, sem reflexo na esfera de interesse da 'Caixa Econômica Federal', que permanece recebendo as prestações, embora com o financiamento mantido ainda em nome do primitivo mutuário, não há falar em obrigatoriedade de citação da mencionada empresa pública. Contrariedade ao art. 47 do CPC inexistente" (RESP 184907 PI, in D.J. de 10.03.2003, p. 220).

"Civil. Sistema Financeiro de Habitação. 'Contrato de gaveta". Morte do promitente vendedor com a conseqüente quitação do saldo devedor do mútuo hipotecário. Sucessores que se negam a cumprir o compromisso de compra e venda. Contrato de gaveta: designação atribuída aos negócios jurídicos de promessa de compra e venda de imóvel realizados sem o consentimento da instituição de crédito que financiou a aquisição; sobrevindo a morte do mutuário-promitente vendedor, os respectivos efeitos prevalecem sobre os do negócio oficial (mútuo hipotecário e seguro), sob pena de enriquecimento sem causa, porque a morte do mutuário/promitente vendedor só teve o efeito de quitar o saldo devedor do mútuo hipotecário, porque o prêmio de seguro foi pago pelo promitente comprador" (RESP 119466 MG, in D.J. de 19.06.2000, p. 140).

"Processo civil. Embargos de Terceiro. Contrato de Gaveta. Imóvel financiado. Morte do Promitente Vendedor. A posse transmitida na promessa de compra e venda pode ser defendida em embargos de terceiro, ainda que fundada em instrumento desprovido de registro (STJ - Súmula nº 84); e se essa posse está ameaçada pelo arrolamento do respectivo imóvel em inventário, não obstante já alienado pelo de cujus, o promitente comprador tem direito à realização da audiência de justificação de posse, tal como deflui do exame conjunto dos arts. 1.046, caput e 1.050, § 1º, do Código de Processo Civil" (RESP 85654 AL, in DJ de 13.12.1999, p. 140).

"Civil. 'Contrato de gaveta'. Sistema Financeiro de Habitação. A Caixa Econômica não pode recusar a alienação de bem que lhe esteja hipotecado em garantia de financiamento efetuado pelo Sistema Financeiro da Habitação, pelo só e só fato de existir cláusula contratual que vede essa transferência" (RESP 189350 SP, in DJ de 14.10.2002, p. 232).

16. A partir do primeiro contrato particular de promessa de compra e venda, no caso, a promitente compradora ficou imitida "na posse, direito, ação, uso e gozo do aludido imóvel, passando em conseqüência a responder pelo pagamento de todos os impostos, taxas e demais emolumentos que recai ou venham a recair sobre o aludido imóvel, inclusive as prestações do saldo devedor e as despesas de transferência definitiva do aludido imóvel para o seu próprio nome ou de quem indicar" (cf. a cláusula quarta do contrato de fls. 16 a 18).

17. Demais disso, o contrato firmado pela interessada, na qualidade de promitente vendedora, não contém cláusula de arrependimento; é inconteste a alienação do seu imóvel residencial, embora inacabada, todavia com efeitos irreversíveis, dentre os quais a desocupação e a impossibilidade de a postulante voltar a residir nele. Destarte, o apartamento, sob o prisma fático e jurídico, não se presta ao domínio e à posse da interessada.

18. No atinente ao art. 9º, I, do Decreto nº 980, de 1993, o método gramatical de interpretação não conduz ao resultado para o qual se deve inclinar a predileção: há de ser prestigiado o "sentido conducente ao resultado mais razoável, que melhor corresponda às necessidades da prática, e seja mais humano, benigno, suave. É antes de crer que o legislador haja querido exprimir o conseqüente e adequado à espécie do que o evidentemente injusto, descabido, inaplicável, sem efeito. Portanto, dentro da letra expressa, procure-se a interpretação que conduza a melhor conseqüência para a coletividade" (Carlos Maximiliano, op. cit, p. 165) (As sublinhas foram acrescentadas).

III

19. Em resumo, para os efeitos de se obter a cessão de uso de apartamento funcional ou de ressarcimento das despesas de moradia, não se há de considerar a requerente como sujeita à proibição versada no art. 9º, item I, do Decreto nº 980, de 1993, até porque, no presente processo, não se noticia que a conduta da interessada na transação do imóvel objeto de consulta, efetuada por intermédio do contrato particular de promessa de compra e venda de fls. 16 a 18, tenha tipificado algum crime ou resultado em prejuízo para o sistema financeiro. Tampouco se vislumbra a má fé e se olvide que todas "as presunções militam a favor de uma conduta honesta e justa; só em face de indícios decisivos, bem fundadas conjeturas, se admite haver alguém agido com propósitos cavilosos, intuitos contrários ao Direito, ou à Moral" (Carlos Maximiliano, ob. citada, p. 263).

Subcensura.

Brasília, 24 de outubro de 2003.

Wilson Teles de Macêdo

Consultor da União

Despacho do Consultor-Geral da União

De acordo. À consideração do Exmo. Sr. Advogado-Geral da União.

BSB, 31.X.03

MANOEL L. VOLKMER DE CASTILHO

Consultor-Geral da União