Despacho FUNAI nº 50 de 28/09/2010

Norma Federal - Publicado no DO em 06 out 2010

Aprova as conclusões objeto do citado resumo para afinal, reconhecer os estudos de identificação da Terra Indígena ESTAÇÃO PARECIS de ocupação do grupo indígena Paresi, localizada nos municípios de Diamantino e Nova Marilandia, Estado do Mato Grosso.

O Presidente da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, tendo em vista o que consta no Processo FUNAI/0375/1996, e considerando o Resumo do Relatório de Identificação, de autoria da antropóloga Siglia Zambrotii Doria, que acolhe, face às razões e justificativas apresentadas,

Decide:

Aprovar as conclusões objeto do citado resumo para afinal, reconhecer os estudos de identificação da Terra Indígena ESTAÇÃO PARECIS de ocupação do grupo indigena Paresi, localizada nos municípios de Diamantino e Nova Marilandia, Estado do Mato Grosso.

MÁRCIO AUGUSTO FREITAS DE MEIRA

RESUMO DO RELATÓRIO DE IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DA TERRA INDÍGENA ESTAÇÃO PARECIS

Referência: processo FUNAI/BSB/0375/96. Terra Indígena: Estação Parecis. Localização: Municípios de Diamantino e Nova Marilândia, Estado do Mato Grosso. Superfície: 2.170 ha. Perímetro: 22 km. Sociedade Indígena Paresi. População: 26 indivíduos (2007). Identificação e Delimitação: Grupo Técnico Portaria FUNAI nº 311/PRES, de 25.04.2007, coordenado pela antropóloga Siglia Zambrotti Doria.

Intervenção institucional

O Relatório de Identificação e Delimitação da TI Estação Parecis trata especificamente do grupo social indígena Paresi habitante da antiga "Estação Parecis", município de Diamantino, MT, que, originário daquela região, ocupa a área continuadamente desde os inícios do século passado. A Estação Parecis foi inaugurada pelo Marechal Cândido Mariano Rondon como parte da implantação, no início do século XX, das Linhas Telegraphicas e Estratégicas do Matto Grosso ao Amazonas e ocupava uma área de cerca de 3.600 ha.

Em 1973, o Sr. João Zoromará, liderança do grupo indígena, juntamente com mais dois Paresi, foram levados á Brasília para inauguração do novo prédio do Ministério das Comunicações com o busto do Marechal Rondon e obtiveram a promessa do então Presidente da FUNAI de garantir a permanência deles na área da Estação demarcada por Rondon. A promessa nunca foi cumprida. A invasão e a ocupação da área foram intensificadas em 1975, com a instituição pelo Governo Federal de um programa de desenvolvimento regional denominado Polocentro, que, por meio de incentivos fiscais aos empreendimentos agropecuários no centro-oeste, levou à instalação de fazendas cujos titulares viram-se apoiados pelas 'certidões negativas' de presença indígena emitidas pela FUNAI. Em 1978 o INCRA realizou a Discriminatória Judicial da Gleba Caetano Dias para regularizar as terras em nome de particulares e equivocadamente inverteu a posição de dois córregos, localizando a área da antiga Estação dentro dos limites da gleba, e alguns dos novos ocupantes da área receberam títulos de propriedade do órgão. Neste mesmo ano a FUNAI, buscando reverter as consequências das "certidões negativas", identificou a demarcação realizada por Rondon encontrando alguns dos marcos antigos no interior de propriedades que ali haviam se instalado. Em 1981 o grupo técnico (GT) instituído pela PP nº 932/E/1981 não logrou propor uma área para esses índios. Em 1983 o Sr. João Zoromará reivindicou junto ao INCRA/Diamantino usucapião de 100 ha, parte ínfima da área que sempre ocupara, com o intuito de garantir não apenas a sobrevivência sua e de sua família, mas resguardar a histórica estação telegráfica da qual fora único responsável por tantos anos. Ironicamente seu pedido foi negado sob a alegação de que se tratava de terra indígena e o processo foi arquivado, enquanto a invasão das terras e a expulsão dos índios se intensificavam. Em 1986 a FUNAI constituiu um novo GT (PP n/1.762, de 19.11) encarregado especificamente de identificar a área indígena Estação Parecis. Nessa ocasião os técnicos fizeram uma proposta de 300 ha, ou seja, reuniram aos 100 ha ocupados pelos índios outros 200 ha que estavam naquela data livres de benfeitorias. Como fatores agravantes, o anterior processo de reivindicação territorial iniciado pelos índios diante da FUNAI foi extraviado e novo processo aberto (Processo FUNAI nº 2095/1987), quando então a Estação Parecis passou a se chamar Estação Rondon, desconsiderando o fundamento histórico da reivindicação dos índios Paresi. Apenas em 1994 a área retomaria o seu nome original. Em 1990 a FUNAI interditou 300 ha das terras incluídas nºs 3.600 ha que haviam abrigado a Estação Telegráfica Parecis para efeito de estudo (Portaria Administrativa nº 574, publicada no DOU. de 20.06.1990), sob protestos dos índios porquanto correspondia a menos de 10% da área que reivindicavam há mais de 20 anos. Os invasores não índios por sua vez ignoraram a interdição da FUNAI. Encravados na área interditada, Sebastião de Assis e Ozenir de Araújo, baseados na "certidão negativa" emitida em 1975 pelo presidente da FUNAI, buscaram regularizar a posse das terras e iniciaram o seu cultivo: derrubaram as roças dos índios, bloquearam o acesso ao córrego (única fonte de água da comunidade) e o poluíram com veneno. Tal situação insustentável resultou em um conflito iniciado em 04.02.1993, quando os Paresi buscaram a solidariedade dos seus patrícios haliti (povo Paresi) das áreas indígenas Pareci, Utiariti e Formoso em defesa das suas terras. Alguns invasores foram tomados como reféns e sua liberação foi condicionada à sua saída da área de 300 ha e à urgente demarcação dos 3.600 ha da Estação Parecis pela FUNAI. Com a saída dos invasores, encerrou-se o episódio conflituoso e a FUNAI deu continuidade ao trabalho de identificação na área, constituindo um novo GT (Portaria nº 308/PRES) que procedeu a identificação e delimitação da Terra Indígena Estação Parecis, com proposta de 3.620 ha e perímetro de 24 km, aproximados. Os trabalhos de demarcação administrativa dessa área foram realizados em 1998 com base nos limites constantes na Portaria Declaratória nº 666, de 01.11.1996, os quais resultaram na superfície de 3.713 ha e perímetro de 24 km. Entretanto, em 10.12.1997, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça proferiu sentença, nos autos do Mandado de Segurança nº 5.03 (97.007626-1) - DF, concedendo "a segurança para determinar que o processo administrativo retorne à fase das publicações previstas no § 7º do Decreto nº 1775/96", com o intuito de se abrir prazo para a contestação previsto no decreto mencionado. Após análise da Procuradoria Jurídica da FUNAI, foi exarada a Informação CJ/MJ nº 1.447, de 09.09.1998, determinando que se atendesse à decisão do STJ. Em 1999 a Portaria nº 67, de 12.02.1999 (publicada no DOU. nº 31, de 17.01.1999), cancelava a Portaria que declarara de posse permanente dos índios a Terra Indígena Estação Parecis.

Considerando que o Parecer aprovativo do relatório de identificação e delimitação da TI Estação Parecis (Parecer nº 078/DID/DAF, de 15.03.1994, publicado no DOU. nº 103, de 01.06.1994) havia sido expedido anteriormente à vigência do Decreto nº 1775/1996 e da Portaria nº 14/MJ/1996, um novo GT foi constituído (Portaria FUNAI nº 311/PRES/2007) para retomar os estudos sobre a TI em questão considerando o disposto na legislação referida. Este grupo deveria considerar, além de pesquisas de campo atualizadas, os elementos de fundamentação contidos no Relatório de 1993, nos autos dos Processos nº FUNAI/BSB/2095/87, FUNAI/BSB/1246/94 e FUNAI/BSB/0375/96, bem como os dados constantes em outros documentos pertinentes ao grupo e à situação territorial. O GT foi coordenado pela antropóloga Siglia Zambrotti Doria, servidora da FUNAI, e as conclusões a que chegou se ativeram ao disposto pela atual legislação, atualizando as informações referentes ao grupo indígena e redefinindo os limites da Terra Indígena Estação Parecis tal como se propõe no presente Relatório de Identificação e Delimitação.

I - DADOS GERAIS:

Habitantes do extenso planalto que vai desde as cabeceiras do Arinos e do Paraguai até as cabeceiras do Guaporé e do Juruena, os índios Paresi (família linguística Aruak) são um grupo étnico formado por subgrupos territorialmente definidos por sua origem mítica comum. Embora vivendo atualmente um profundo desequilíbrio populacional decorrente da intensificação das invasões em seus territórios a partir do início do século XX, os Paresi compõem uma sociedade formada por uma maioria Kozárini (que ocupa grande parte do atual território), uma minoria Wáimare (na TI Formoso e nas aldeias Sacre e Bacaval da TI Utiariti) e Kazíniti, como os Paresi que habitam a Estação Parecis. O nome Paresi é atribuição dada por não índios, sendo haliti ("nossa gente", "nosso povo", "povo verdadeiro") a autodenominação dos índios Paresi. As primeiras notícias sobre esses índios foram dadas pelo bandeirante Antônio Pires de Campos, que explorou a região em 1718. Seu relato sobre o 'Reino dos Paressis' contribuiu para atiçar a cobiça dos buscadores de ouro e preadores de índios que sentiam a decadência da atividade mineradora em Cuiabá. Durante o apogeu da mineração no distrito de Diamantino, que principia no século XIX, os índios da região seriam utilizados como mão-de-obra escrava na exploração das minas. Já na segunda metade deste século, entre 1856 e 1858, foi fundado pela Diretoria Geral dos Índios da Província do Mato Grosso um aldeamento desses índios no município de Diamantino, e viajantes, etnógrafos e botânicos continuaram a dar notícias sobre essa sociedade indígena localizada nos sertões de Mato Grosso. Podemos citar, entre outros, os viajantes Bartolomé Bossi (1863) e o etnógrafo Karl Von den Steinen (1887). Outro viajante, o missionário salesiano Nicoláo Badariotti, também entraria em contato com os Paresi, dando notícias em 1898 da sua exploração na Serra dos Parecis, informando que esses índios "habitavam um vasto território que limitava ao sul com a serra de Tapirapuan e a nação dos Barbados; a leste com Diamantino e a bacia do Arinos, ao norte com o território dos Cabexins e dos Tapanhumas; a oeste com o rio Juruena e o território dos Cabeçaes" (Badariotti, N. Exploração do Norte do Matto Grosso - região do Alto Paraguay e Planaldo dos Parecis. Apontamentos de História Natural, Etnographia, Geographia e impressões pelo Padre Nicoláo Badariotti". São Paulo, Salesiano, Escola Typ.Salesiana, 1898, pp 77-8). Badariotti foi o viajante que mais se aproximou dos Paresi do noroeste de Diamantino, o que pode ser constatado em suas anotações onde relata que a vinte léguas de Diamantino encontrou a aldeia do paresi de nome Cyriaco, considerado pelos outros índios como um degenerado por se comunicar muito com os civilizados. Dali seguiu pela mata e uma hora depois chegou a uma maloca habitada por uma família numerosa, cujo chefe batizou com o nome de João. Sempre na direção oeste, com o auxílio de guias Paresi, encontrou uma terceira e uma quarta aldeia. Atravessou um chapadão, um declive, um campo imenso e avistou a Serra dos Parecis. Indo pelos seus contrafortes, reparou que as águas começavam a correr para o norte: "começava alli a imensa vertente do Amazonas!" (Badariotti (1989:112). A partir do último terço do século XIX tem início a atuação da frente extrativa da borracha nas proximidades de Diamantino. Os Paresi foram inicialmente usados como guias pelos seringueiros que percorriam as trilhas que ligavam as cabeceiras dos rios, sendo engajados poscreto teriormente como mão-de-obra nos barracões, o que os sujeitavam a semi- escravidão. Os que trabalhavam de forma autônoma na extração e comercialização da borracha sofriam a mesma exploração vivenciada nos seringais e viam suas mulheres sendo submetidas aos exploradores. Todas as tentativas de reverter o quadro de submissão e de exploração foram suprimidas com violência, como o incêndio da aldeia Koterocô-suê, hoje conhecida como Aldeia Queimada, e o assassinato dos índios que trabalhavam nos seringais do Bacabal. No início do século XX, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, intensificou-se na Chapada dos Parecis a coleta da poaia ou ipecacuanha, uma droga do sertão com propriedades medicinais. A coleta sazonal deste produto (no período das chuvas) desenvolvia-se muitas vezes em interação com a extração da seringa (no período da seca). Os Paresi trabalhavam nessa coleta em conjunto com outros ou de forma autônoma. O antropólogo David Price, em seu trabalho Pareci, Cabixi, Nambikwara: a case study in the western classification of native people, publicado em 1983 pelo Journal de la Société des Américanistes, Musée de L'Homme, vol. 69, baseando-se em documentação histórica, apresenta mapas que trazem informações sobre a distribuição territorial desses índios e seus subgrupos ao longo dos três últimos séculos. O mapa do século XVIII localiza os Mambaré, os Paryci e os Cabexy, que correspondem aos Wáimare, aos Kazíniti e aos Kozárini, no divisor das águas da Chapada dos Parecis, nas cabeceiras do Juruena, do Rio do Sangue e do Arinos. Já o mapa do começo do século XX apresenta informações mais precisas quanto à localização geográfica desses subgrupos, uma vez que foi baseado nas pesquisas do etnólogo alemão Max Schmidt (1943) e da Comissão Rondon, cabendo aos Kazíniti a região onde Rondon construiu, em 1908, a Estação Telegráfica Parecis. Os Wáimare e os Kazíniti foram encontrados por Rondon exatamente no ano de 1907, quando dava início à construção das "Linhas Telegraphicas e Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas". Idealizada depois da guerra do Paraguai (1865-1970) e iniciada pelo General Deodoro da Fonseca (1888), foi executada pela Comissão Rondon como uma estratégia militar de consolidação das fronteiras, quando Mato Grosso já participava do mercado internacional da borracha. De 1907 a 1915 os contatos dos índios com Rondon foram intensos, de acordo com os minuciosos registros do seu diário de campo que apontavam o dia-a-dia do avançar das linhas, os grupos locais Paresi encontrados e contatados pelo caminho, a localização das aldeias, bem como a auto-identificação do grupo. Em setembro de 1907, depois de sair de Diamantino, passando a serra e entrando no Chapadão dos Parecis, Rondon encontrou os Paresi do córrego Wazuliatiá, um grupo Kazíniti, onde ele conseguiu o seu primeiro guia para avançar em direção ao norte. Wazuliatiá é o nome indígena do córrego Cágado e ali, na sua cabeceira, foi montado o primeiro acampamento da Comissão; quase um ano depois foi construída a Estação Parecis. Em relatório apresentado à Directoria Geral dos Telegraphos e à Divisão de Engenharia do Departamento da Guerra, o então tenente-coronel Cândido Mariano da Silva Rondon, chefe da Comissão, relata que "(...) a 20 [de maio de 1908] estávamos na Estação de Parecis, que foi instalada no chapadão divisor de águas Wazuliatiá ou ribeirão Kágado, águas do Arinos e o São Francisco, águas de Paraguay. Era a primeira estação que installávamos no afamado planalto dos Parecis, e por isso adoptei, para denominá-la, o seu nome, que o é de outr'ora grande nação indígena, senhora absoluta que foi desses vastos domínios. A estação referida havia sido inaugurada de poucos dias antes da nossa chegada alli" (Rondon, Cândido Mariano da S. Relatório apresentado à Directoria Geral dos Telegraphos e à Divisão de Engenharia do Departamento de Guerra pelo Tenente-Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon Chefe da Comissão. Publicação nº 39. Rio de Janeiro, Construção, Ministério da Agricultura, 1919. 2v. p. 29). Em junho do mesmo ano, Rondon deu notícias dos serviços realizados na Estação Parecis e da demarcação dos 36 km quadrados do seu núcleo, conforme o Decreto nº 227, de 19.07.1909 (opus cit., p. 33).

Com a inauguração da primeira estação em território Paresi, a construção de outras estações ficou praticamente garantida. Recrutando preciosos guias pelo caminho, Rondon fazia das aldeias indígenas pontos de pouso e abastecimento. Ponte de Pedra, a próxima estação, foi construída em plena aldeia, sendo ali instalada a primeira escola das linhas telegráficas voltada para crianças indígenas da região, escola transferida posteriormente para a Estação do Utiariti. E entre 1911 e 1912 a maioria dos Paresi já havia abandonado suas aldeias, estabelecendo-se nas estações telegráficas. Segundo o relatório da Comissão, todos os serviços de conservação das obras da linha a partir da estação de Diamantino até a de Juruena, numa extensão superior a 400 quilômetros, foram entregues aos índios Paresi. Informações sobre os Paresi que trabalhavam nas estações podem ser encontradas nas obras do pesquisador do Museu Nacional E. Roquette Pinto (1917), e do ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt (1914). Rondon testemunhou o avanço das frentes extrativistas da borracha que alcançaram os seringais do Rio do Sangue e do Arinos, atingindo profundamente os grupos Kazíniti e Waimare, os quais já estavam passando por um brutal processo de extermínio, decorrente também da fatalidade das epidemias de varíola, sarampo e febre amarela. Assim, ao demarcar as estações, Rondon definia uma área para a sua sede e procurava mantê-las sempre povoada pelos Paresi, acreditando que a aproximação dos índios com as linhas telegráficas seria uma alternativa mais justa do que a exploração a que eram submetidos nos seringais. No início do século a região mais rica em seringa estava bem próxima das estações Parecis e Ponte de Pedra, como o seringal Três Jacus. Escreveu Rondon que não havia um só estabelecimento de seringa, de caucho ou de poaia no qual grande parte e às vezes todos os trabalhos não fossem feitos por índios, que eram explorados sob o regime de barracão. Em 1910, em carta ao Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), por ocasião da fundação do Serviço de Proteção aos Índios e Trabalhadores Nacionais (SPITN), Rondon refere-se explicitamente a essa questão, informando que muitos Paresi já haviam manifestado interesse trabalhar na conservação das linhas telegráficas do sertão, certos de que o governo lhes concederia mais justa retribuição do que com as atividades com a borracha. Dessa forma, as estações telegráficas, assim como as linhas que as ligavam, passaram a se constituir em parte da história do contato desses índios Kazíniti, influenciando e interferindo em seu modo de vida tradicional, aproximando das estações as aldeias e incorporando os índios como trabalhadores e guias no período da construção das linhas. Esse envolvimento foi tão profundo que após a desativação das estações os índios se transformaram em guardiões do legado de Rondon, sobretudo os índios da Estação Parecis.

João Zoromará, que constituiu o grupo familiar que permaneceu na Estação Parecis mesmo após a desativação das linhas telegráficas, nasceu na aldeia Taikwakwé ou Lagoa Rasa, às margens do córrego do mesmo nome, território tradicional do subgrupo Kazíniti (Kaxíniti), próximo ao lugar designado Ponte de Pedra, de onde teriam surgido da pedra os ancestrais míticos dos Paresi. Antônio F. Zoromará, seu pai, trabalhava no seringal quando, em 1915, foi recrutado por Rondon para Utiariti, trabalhando como tropeiro entre as estações. Nos anos de 1930, alguns Paresi cujas famílias habitavam as áreas das estações aprenderam telegrafia quando os funcionários brancos (imóti) as estavam abandonando. Em 1931 João Zoromará foi contratado para continuar o trabalho de seu pai (tropeiro) entre as estações Parecis e Capanema e logo depois passou a atuar como telegrafista nessas estações. Em 1940, os dois telegrafistas responsáveis pela Estação Parecis a deixaram, um por morte e outro por haver migrado para Cuiabá, e Zoromará tornou-se o único responsável pela estação telegráfica até 1966, quando então se aposentou, continuando a ocupar a área com sua família de acordo com os costumes do seu povo - caçando, pescando, lavrando a terra. Com a extinção da Comissão Rondon, as linhas telegráficas do norte do Mato Grosso passaram para a administração da Diretoria Regional do Telégrafo, com sede em Cuiabá. Assim, os Paresi conheceram o abandono e a fome nas estações, que se arruinaram completamente depois da morte de Rondon, em 1951. Apenas a manutenção de alguma agricultura nas áreas, que antes haviam servido para a manutenção dos trabalhadores das linhas e suas famílias, evitou o pior. Nessa época registrou-se a chegada dos primeiros fazendeiros na área da Estação Parecis. A desativação das linhas significou concretamente a efetivação da grande expropriação das terras indígenas. As estações mantiveram ao longo do tempo uma duplicidade de sentidos, tanto de terra halíti quando de terreno administrado pela Comissão que funcionou sem conflitos enquanto dependeu do prestígio e das verbas de Rondon. Uma vez desativada a Comissão, o grande prejuízo ficou com os índios: os que eram os seus funcionários e habitavam com suas famílias as estações - telegrafistas, guarda-fios, tropeiros, cozinheiros - foram tratados na mesma condição que os imóti (brancos), sendo compelidos a abandoná-las sendo transferidos para as cidades, inaugurando uma perambulação pelas suas periferias, sobrevivendo com irrisórias aposentadorias do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social). Após as frentes extrativistas, um contingente ainda maior de população não índia ingressou na região e esse movimento acentuou-se com a construção da rodovia BR 364 na década de 1960. Ligando Cuiabá (MT) a Porto Velho (RO), a rodovia cortou ao meio a Estação Parecis e outras áreas indígenas mais ao norte, propiciando a ação de madeireiros, o assentamento de fazendeiros e a criação de uma miríade de novos municípios. Já na década seguinte a agricultura intensiva de soja para exportação fortaleceu-se sob uma política oficial incentivadora da modernização do campo e o Polocentro foi um dos programas criados pelo governo federal voltado ao financiamento da ocupação agropecuária dos cerrados de Minas Gerais e do Centro Oeste. Uma das áreas escolhidas chamava-se Área Pareci, de superfície de 800 mil ha, incluindo não somente a área da antiga Estação Parecis como também a da atual TI Utiariti. O surgimento da rodovia BR 364 e o incentivo governamental a empreendimentos consolidaram a implantação de fazendas na área, o que estimulou a invasão pura e simples das terras da estação por fazendeiros, alterando drasticamente o cotidiano da comunidade indígena que persistia em habitá-la.

II - HABITAÇÃO PERMANENTE

A exploração da borracha nas matas do Arinos e do Juruena foi a causa da dizimação dos subgrupos Paresi, assim como da drástica redução da população Wáimare que habitava exatamente a região das matas de seringa. Vitimados pela exploração e violência nos seringais, varridos pelas epidemias trazidas prelos brancos invasores, os Waimare chegaram ao século vinte reduzidos a alguns grupos locais. Da mesma forma os Kazíniti, já fatalmente envolvidos com os seringais, tornaram-se muitas vezes guias dos próprios invasores dos seus territórios. Os Kozárini, embora também afetados pela invasão das matas, mantiveram-se mais afastados dos seringais e resguardaram-se culturalmente. As aldeias Paresi eram no passado e são ainda hoje espaços onde convivem os Ihinaigaré Kaisereharé (parentes verdadeiros), cabendo-lhes o direito exclusivo sobre os recursos de seu território. Em geral as aldeias têm uma ou duas casas comunais (hati), situadas na extremidade de um pátio (watéko), e uma pequena casa onde são guardadas as flautas mágicas usadas em seus rituais. Essas grandes casas abrigavam até 60 pessoas. A regra de descendência é ambilocal, havendo geralmente uma uxorilocalidade temporária após o casamento, o qual ocorre preferencialmente entre primos cruzados bilaterais. A aldeia é uma unidade social significativa para os Paresi, constituída por um grupo social específico cujas relações são marcadas pela solidariedade e se manifesta na intensa cooperação de trabalho. Os produtos da caça e da pesca são distribuídos por todos os membros de um mesmo grupo local, ocorrendo a união de seus integrantes para a realização de certas etapas de trabalho agrícola e eventos rituais. O grupo doméstico (família extensa de três gerações) parecer ser a instituição central em termos de organização econômica do grupo local e apresenta grande autonomia no tocante a provisão dos bens necessários à subsistência.

Dos Paresi que nasceram, cresceram, trabalharam e moraram na Estação Parecis, os únicos que resistiram à invasão dos fazendeiros a partir dos anos 1950/1960, foram o Kazíniti João Zoromará, sua esposa e filhos, e algumas outras famílias aparentadas que mais tarde se dispersaram. Depois da morte do casal, seus filhos, netos e suas famílias continuaram a luta contra a expulsão. A antiga reserva Parecis, criada na década de 1980 para abrigar uma maioria Kozárini, foi posteriormente desmembrada para formar as Terras Indígenas Utiariti e Paresi, e foi constituída a TI Rio Formoso; para elas se dirigiram alguns dos moradores da Estação Parecis forçados pela presença dos fazendeiros, todavia não houve solução para os Zoromará por serem Paresi Kazíniti. Eles permaneceram na Estação Parecis, situada no território imemorial do seu subgrupo, não havendo se colocado para eles a alternativa do deslocamento. A população ficou reduzida a três pequenos grupos domésticos, totalizando 26 habitantes, que constituem uma família extensa. A Aldeia existente na referida área tem como alicerce o prédio em ruínas da antiga estação telegráfica e outras construções originais de Rondon, e parte de uma construção iniciada por um fazendeiro invasor foi precariamente adaptada para abrigar um dos grupos domésticos. Na área à qual foram confinados situa-se o cemitério; no entanto, na área mais ampla que ocupavam anteriormente foram identificados os locais onde existiram três outras aldeias Paresi na década de 30: Aldeia João Ferreira, Aldeia Batistinha, Aldeia Tenório. A despeito do abandono e da falta de recursos, os Paresi da Estação Parecis consideram sua missão a guarda e a manutenção da estação, o legado que lhes deixou Rondon.

III - ATIVIDADES PRODUTIVAS

As principais atividades produtivas da sociedade Paresi permanecem as mesmas ao longo da sua história - o cultivo agrícola, a caça, a pesca e a coleta, e assim ocorre com os Paresi da Estação Parecis. Na agricultura o cultivo mais importante é o da mandioca brava, seguida do milho e de outros cultivares menores, como o feijão, a batata, a abóbora, entre outros. A atividade da caça é fundamental para o grupo local, mas ocorrem caçadas conjuntas nas ocasiões das festas de 'chicha' (nominação de criança, festa da moça nova e roça velha). A pesca é uma atividade a que se dedicam homens, mulheres e crianças, sendo realizada com anzol ou com timbó. A coleta de frutos silvestres, como o coco da bacaiúva, o babaçu e o abacaxi do mato, por sua vez é uma atividade predominantemente feminina, intensificada no princípio da estação chuvosa. Os artefatos Paresi eram bem conhecidos pelos seus vizinhos índios antes do contato pela sua qualidade e alta tecnologia. Dominavam a fiação do algodão e a confecção de redes e vestes. A cestaria era também igualmente desenvolvida, sobretudo nos artefatos dirigidos ao preparo de subprodutos da mandioca. Essas atividades se mantêm em algumas áreas Paresi mais ao norte, todavia, na Estação Parecis, já não são significativas. Os habitantes da Estação cultivavam roças e mandioca, milho, feijão, arroz, batata, abóbora, melancia, cará, abacaxi, banana e cana-de-açúcar. Por tantas vezes suas antigas plantações foram destruídas pelos tratores ou pisoteadas pelo gado dos fazendeiros que os moradores remanescentes tiveram de abandonar essa atividade em maior escala, mantendo apenas pequenas roças de mandioca e milho para sustentar as poucas cabeças de caprinos e bovinos que possuem. O córrego Wazuliatiá (Cágado), que corta a área indígena, não muito tempo antes era rico de espécies como lambari, cará, traíra, pacu, matrinxã, no entanto os fazendeiros a montante construíram barragens em seu curso, impossibilitando a desova dos peixes. Mais ainda, suas águas estão impróprias para o consumo dos índios, porquanto os empregados das fazendas de soja vizinhas nele lavam os vasilhames dos agrotóxicos utilizados nas plantações e despejam os resíduos. Ele é poluído também pelo escoamento dos insumos agrícolas utilizados neste tipo de cultivo, além do assoreamento decorrente da monocultura em seu entorno. A área acima do curso d'água era constituída por mata e reservada para a caça, recurso alimentar essencial ao grupo indígena, que apresentava abundância de espécies como anta, cutia, paca, tatu, jacu, ema, macaco, cágado e inhambu. As matas foram sendo derrubadas pelos fazendeiros na década de 1960-1970, primeiro para o plantio do arroz, logo depois substituído pela soja. Atualmente, na estreita faixa de mata remanescente, encontra-se com dificuldade alguns animais que a comunidade tem tentado manter vivos, sendo que o cerrado praticamente não existe mais. Nos últimos anos, o pomar plantado e mantido pela comunidade entrou em decadência devido ao surgimento de pragas e ausência total de recursos. Essa comunidade halíti mantém ainda com dificuldade pequenas hortas com pimentão, cebolinha, alface, tomate e pimenta e cria pequenos animais, como galinha, galinha d'angola, pato, porco e cabrito, mas em quantidade insuficiente para suprir as suas necessidades. Assim, obtém alguma renda no desempenho de trabalhos nas fazendas circunvizinhas e dela dependem para complementar a sua dieta com produtos regionais. Eventualmente cestas básicas são entregues pela FUNAI.

IV - MEIO AMBIENTE

A TI Estação Parecis localiza-se no sudoeste do Estado de Mato Grosso. O principal rio da região é Ponte de Pedra, pertencente à bacia hidrográfica do rio Tapajós, e é banhada pelo córrego Cágado (Wazuliatiá), tributário do Ponte de Pedra. O clima da região é tropical chuvoso, quente e úmido com duas estações bem marcadas - seca e chuvosa. A temperatura média fica em torno dos 25º C, podendo ocorrer valores mais baixos em decorrência das frentes frias ocasionais (meses de julho e agosto). Em termos geológicos, essa área indígena encontra-se inserida na Formação Utiariti. A TI está inserida no bioma Cerrado, região do Brasil Central que cobre cerca de 20% do território brasileiro. É visto como uma vegetação savânica cujas particularidades incluem uma diversidade de fitofisionomias que englobam formações campestres, savânicas e florestais. Os Paresi fazem historicamente uso deste bioma nas mais variadas formas, retirando dele sustento. Na área proposta para a TI foram caracterizadas quatro fitofisionomias: Cerrado Sentido Restrito (subtipo Típico); Campo Limpo Úmido; Mata de Galeria (Não Inundável e Inundável); Floresta Estacional Semidecidual, sendo que 43,0% são áreas de Cerrado Típico, 31,2% de Campo Limpo Úmido, 21,2% de Mata de Galeria e 2,9% de Floresta Estacional Semidecidual. A área atualmente ocupada pelos Paresi da Estação Parecis resume-se a uma parte dos 300 ha interditados em 1970 pela FUNAI (a outra parte, situada do outro lado da estrada de rodagem, foi apropriada por fazendeiros e está hoje ocupada por plantações de soja), a uma fração do córrego Cágado, poluído, a uma estreita faixa de mata e a uma ínfima porção do cerrado remanescente, além de pequenas áreas de terra não apropriadas para a agricultura. As extensas plantações de soja no seu entorno vem provocando danificações no ecossistema dessa área indígena, como erosão, desmatamento e poluição por agrotóxico, cujas conseqüências são a rarefação e mesmo desaparecimento da caça e dos peixes, recursos básicos na dieta dos índios. De acordo com a antropóloga Mª Fátima Machado, quem primeiro estudou esse grupo indígena, "os índios só conseguiram sobreviver na TI Estação Parecis graças à herança de uma característica básica da sociedade haliti: as aldeias são sempre construídas no cerrado baixo (firakwarê, na língua haliti), mas próximas a uma mata ciliar, de várzea, chamada unikuni. Uma estréia linha de mata ciliar do córrego Kágado, o Wazuliatiá, que banha a área da estação, foi a única vegetação natural não destruída pelos invasores, que praticam a agricultura intensiva onde antes era o cerrado" (Machado, Maria Fátima Roberto, Laudo Pericial referente ao Proc. Nº 93.0000174-4 da 3ª Vara do Estado de Mato Grosso, 1998, in Processo FUNAI/BSB/0375/96, fls 167 (Vol. I)). As adjacências das casas dos índios são uma das raras áreas do cerrado remanescente, onde se observa tanto o "campo cerrado" (de fisionomia aberta, com árvores esparsas) quanto o "campo sujo" (onde predomina a fisionomia campestre, com vegetação rasteira e árvores pequenas). A floresta ao longo do córrego é considerada "zona de tensão ecológica", com misturas vegetacionais. Na área remanescente pode-se observar a mistura de elementos de cerrado e de floresta, ainda que as bordas e a transição dela com os cerrados tenham sido removidas pela monocultura. A vegetação nativa sofreu um secionamento entre as bacias hidrográficas amazônica e platina, e na região observa-se o desaparecimento de faixas florestais que funcionavam como um corredor de dispersão da flora e migração da fauna.

V - REPRODUÇÃO FÍSICA E CULTURAL

Os Paresi da Estação Parecis hoje mantém um modo de vida singular que os identifica diferentemente da sociedade que os cerca, por sua vez distinta daquele que um dia conheceram. Ilhados em fração ínfima da terra que outrora lhes pertencera, privados de seu modo de vida tradicional e de seus direitos contemporâneos, eles vivem momentos difíceis. Com o seu território tradicional invadido por não índios desde a década de 1960, encontra-se o grupo ocupando menos de 300 ha, dos quais as terras destinadas à produção não permitem a sua sobrevivência física e cultural. Sem acesso às áreas lhes que permitiram no passado a realização das atividades tradicionais de subsistência (caça, pesca, coleta e mesmo agricultura) sujeitam-se a toda sorte de violências por parte dos não índios, como o assassinato recente de uma parente, e são obrigados a vender sua força de trabalho para os fazendeiros vizinhos e mesmo distantes, ausentando-se da terra em busca de serviços temporários. As cestas básicas distribuídas pela FUNAI tornaram-se o recurso heróico que têm lhes permitido resistir aos invasores e arrivistas, aguardando a definição dos procedimentos jurídicos tendentes à garantia de suas terras pelo Estado Brasileiro. O comparativo feito entre os dados censitários obtidos em 1985, 1994 e 2007 deixa entrever o êxodo vivenciado per essa família extensa e a situação insustentável em que se encontra. Com a morte dos membros mais velhos do grupo - por abandono, por violência causada pelos fazendeiros vizinhos, a maioria da população indígena é constituída por jovens e crianças, o que demonstra a necessidade de garantir os meios para a subsistência atual e futura dessas pessoas, na medida em que os recursos aportados pelos mais velhos oriundos de aposentadorias estancaram-se com suas mortes. No entanto, além dos registros históricos feitos por observadores ocidentais ao longo dos três últimos séculos, confirmando a imemorialidade da ocupação dessa região do planalto que leva o nome do povo indígena Paresi, particularmente do subgrupo Kazíniti, outra fonte de igual peso e importância - os mitos e narrativas dos próprios Paresi - afirmam a existência de uma identidade haliti partilhada pelos subgrupos contemporâneos dessa etnia sobreviventes do processo colonizador que expropriou suas terras. Essa identidade é mantida pela consciência mítica da sua origem comum e pela memória, a partir dela, que identifica relações de sangue, de língua, de cultura e, sobretudo, de territorialidade. De acordo com o etnólogo Schmidt (1934), na cosmologia Paresi, um grupo de siblings (irmãos germanos) saiu do interior da terra, brotou pelas fendas das rochas existentes no rio Sucuriu-iná (Sucuruina ou Ponte de Pedra) e descobriu o mundo. Wázare, o irmão mais velho, saiu primeiro, orientando a saída dos seus outros irmãos, instalando-os em seus próprios territórios: "Depois de encontrar e nomear todas as cabeceiras dos Kozárini, ele ainda voltou para o Rio do Sangue, o Zutyalhali winã, até chegar às cabeceira do Wazolahtiá (Wazuliatiá), o córrego Kágado (que localiza a antiga Estação Parecis), chamado Wazolahtiá sewe. Wázare disse a Zawlore, ancestral dos Kazíniti: "esta cabeceira é para sua gente e assim também Ahozá winã (cabeceira do lobo) e Tolomare sewe" (cabeceira do pica-pau de cabeça vermelha) no Rio Parecis (Kawiinazá), afluente do Arinos; É o limite mítico do território Kaxíniti" (Schmidt 1934: 150-151). Em termos tradicionais, esse mito fala sobre a organização social, política e territorial dos halíti. Eles compõem uma sociedade formada, justamente, por grupos de irmãos, que e casam (idealmente) com outros grupos de irmãs, formando aldeias, pequenos grupos locais ao longo do território, respeitando as fronteiras de cada grupo endogâmico. O mito de origem corresponde basicamente às expectativas culturais em termos daquilo que pode ser considerado até hoje como central à vida dos halíti: o parentesco, a organização política e a territorialidade. Wázare, ao distribuir o território entre os irmãos, evitou a competição pelos recursos naturais entre eles e entre seus filhos, adaptando-os assim a nichos específicos. Vê-se assim que o grupo Kazíniti de João Zoromará, da TI Estação Parecis, apresenta o mesmo tipo de composição social, política e territorial descrito no mito: irmãos germanos (siblings) como base social de um grupo local (aldeia). A vinculação com o território se dá no plano da memória individual e coletiva, na medida em que residiram nos seus territórios originais: quando deles apartados, no plano simbólico a vinculação apóia-se nas representações estabelecidas pelo mito original. Essa memória permitiu aos pesquisadores identificar os locais onde várias antigas aldeias existiram entre a Estação Parecis e Ponte de Pedra e de antigos cemitérios. Os Paresi tradicionalmente enterravam seus mortos no interior das suas casas, portanto falar de uma casa Paresi é falar dos mortos nela enterrados, mas cemitérios coletivos foram constituídos por interferência dos "civilizados", principalmente daqueles envolvidos com a linha telegráfica, como é o caso daquele situado na TI Estação Parecis. Mas, para além da persistência do mito original que lhes confirma a pertinência étnica ao Povo Paresi e à sua terra, o legado de João Zoromará aos seus descendentes efetiva Rondon como o 'herói fundador' dos Paresi da Estação Parecis e essa experiência histórica dos Wáimare e Kazíniti favoreceu a manutenção de uma identidade halíti diferenciada, em contraste com o modo de ser Kozárini [subgrupos Paresi]. O "diálogo cultural" entre Rondon e os índios resultou na categoria 'índios de Rondon', para identificar os Wáimare e Kaxíniti das linhas, diz Maria Fátima Machado: " Ao mesmo tempo que falam do herói, eles projetam uma imagem de si, constituem uma categoria particular de índios, cuja identidade não pode prescindir de um determinada história que é, concretamente, a história das linhas e das suas relações com Rondon".(Machado, Processo FUNAI nº 0375/96, fls. 267). A existência concreta de um espaço que ao mesmo tempo condensa e refrata circunstâncias e relações de tal forma poderosas, e o sentido de 'missão' assumido por João Zoromará e sua família com respeito à guarda, à manutenção e à conservação da Estação Parecis, explicam e justificam a luta desigual pela permanência naquele local definido em 1907 por Rondon, não importando que fisicamente quase toda a área tenha sido 'legalmente' ocupada por terceiros e degradada pela atividade agropecuária.

VI - LEVANTAMENTO FUNDIÁRIO

A proposta de delimitação da Terra Indígena Estação Parecis estabelece uma superfície de 2.164,4105 hectares e um perímetro de 21. 494 metros. Essa área engloba aquela já de posse dos índios e incorpora áreas de fazendas situadas no seu entorno para permitir a sua sobrevivência física e cultural. Atualmente, na área proposta à delimitação, encontram-se oito (8) propriedades, sendo que apenas em duas delas os proprietários são residentes. As demais são ocupadas por empregados e mesmo arrendatários informais. O trabalho de levantamento foi realizado pelo GT constituído pela Portaria 311/PRES/07. A vistoria ocorreu em abril de 2007, e obteve-se o seguinte quadro demonstrativo de ocupantes não índios:

1 -Valdir de Almeida - Fazenda Espigão. Área incidente na TI de 372, 2369 ha. Proprietário residente. 2 -Adelino Simões Carvalho - Fazenda São Paulo. Área incidente na TI de 399,8545 ha. Proprietário não residente. 3 -Armando Simões Carvalho - Fazenda Brasilusa. Área incidente na TI de 816,7794 ha. Proprietário não residente. 4 - Valdecir Emerick - não identificado, Área incidente na TI de 182,4606 ha. Proprietário não residente. 5 - Cleber Veronesi - Fazenda Colorado. Área incidente na TI de 25,8111 ha. Proprietário não residente. 6 - Luiz Dreyfus Commodities S. A - Armazéns Gerais (Armazém COINBRA). Área incidente na TI de 9,6106 ha. Proprietário não residente. 7 - Milton Rolin da Silva - Restaurante Entroncamento. Residente. 8 - Marcos de Tal - Posto Três Proprietários, comércio de combustíveis, atualmente desativado. Não residente.

A legislação constitucional de 1988 orientou a redefinição da área da Terra Indígena Estação Parecis realizada pelo presente Relatório, tornando prescindível o levantamento da cadeia dominial da área pretendida pelos índios Paresi que a habitam de forma permanente. Não obstante, como já apresentado, os direitos de propriedade das terras incidentes na antiga Estação Parecis originam-se do reconhecimento pelo INCRA de uma gleba denominada Caetano Dias, cujas terras foram vendidas pelo Estado do Mato Grosso a empresas de colonização e particulares. 1968 é a data de registro das terras adquiridas por Roberto Carlos Braga, e os registros mais recuados dessas terras subdivididas são de 1975/1976. Ou seja, esses particulares não índios chegaram à região muito tempo depois da ocupação comprovada documentalmente por esses índios Paresi que habitam a Estação Parecis, e isso sem levar em conta a ocupação imemorial da região por seus antepassados. Esse volume considerável de documentação pesquisada encontra-se em anexo ao Relatório de Identificação aqui resumido.

VII - CONCLUSÃO E DELIMITAÇÃO

Pelo direito estabelecido na Constituição da República Federativa do Brasil:

Art. 231 São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Assim, considerando: - o consenso histórico recuado sobre a ocupação tradicional dos halíti sobre estas terras, fartamente comprovada pelas referencias historiográficas e documentais, bem como pela própria história oral; a existência ainda de áreas potencialmente recuperáveis em termos de caça, pesca, frutos do cerrado e demais recursos imprescindíveis à produção e reprodução social destes índios, hoje reduzidos e cercados pela agricultura mecanizada e seus insumos; a possibilidade de recuperação demográfica e cultural desse grupo mediante a ampliação da terra na qual foram confinados pela interdição feita pela FUNAI em 1970; o fato de que, além de ser a terra parte do território imemorial dos Paresi, ela está na ordem da tradição e das referências socioculturais do grupo indígena que a habita, hauridas da sua permanência continuada por mais de 60 anos; -que o território histórico e tradicional sofreu esbulho por parte do estado, fazendeiros e empreendedores, tendo sido parcialmente depredado também o seu entorno, que a regularização da área indígena, além de garantir a conservação da biodiversidade local e contribuir para a preservação da bacia hidrográfica relacionada, permitirá aos Kazíniti a reocupação efetiva e legalmente estabelecida de parte do seu território histórico e tradicional, tão importante para a sua reprodução física e cultural; considerando finalmente que a demarcação da TI Estação Parecis é um compromisso do Estado e particularmente da FUNAI de reparação mínima dos erros historicamente perpetrados, concluímos pela Delimitação da Terra Indígena Estação Parecis, situada no Estado do Mato Grosso, com uma superfície de 2.170 ha (dois mil, cento e setenta hectares) e um perímetro de 22 km (vinte e dois quilômetros), e sua posterior demarcação e homologação para usufruto da Comunidade Paresi que nela habita permanentemente.

Delimitação

A Terra Indígena Estação Parecis apresenta uma superfície de 2.170 ha (dois mil, cento e setenta hectares) e um perímetro de 22 km (vinte e dois quilômetros). Situa-se nos Municípios de Diamantino e Nova Marilândia, no Estado do Mato Grosso. A base cartográfica utilizada na definição dos limites: SD-21-Z-A-I. Escala 1:100.000 - IBGE - 1976. As coordenadas geográficas citadas são referenciadas ao Datum Horizontal SAD 69. O mapa e respectivo Memorial Descritivo foram elaborados pelo Técnico Agrimensor Gilmar Campos Soeiro e conferidos pelo Coordenador da CGGEO José Antônio de Sá, engenheiro cartógrafo.

DESCRIÇÃO DO PERÍMETRO

Partindo do Ponto P-01, de coordenadas geográficas aproximadas 14º 08'29"S e 56º 57'48"WGr, segue por linha seca até o Ponto P-02, de coordenadas geográficas aproximadas 14º 06'43"S e 56º 53'42"WGr; daí, segue por linha seca, até o Ponto MC-41, de coordenadas geográficas aproximadas 14º 08'10"S e 56º 53'30"WGr, localizado na margem esquerda do córrego Cágado; daí, segue por linha seca, até o Ponto P-03, de coordenadas geográficas aproximadas 14º 08'52"S e 56º 53'24"WGr, localizado na faixa de domínio da BR-364; daí, segue pela referida faixa de domínio, no sentido de Cuiabá-MT para Porto Velho-RO, até o Ponto P-04 de coordenadas geográficas aproximadas 14º 08'52"S e 56º 53'28"WGr; daí, segue pela referida faixa de domínio, até o Ponto P-05, de coordenadas geográficas aproximadas 14º 09'07"S e 56º 55'39"WGr; daí, segue pela referida faixa de domínio, até o Ponto P-06, de coordenadas geográficas aproximadas 14º 09'21"S e 56º 57'42"WGr; daí, segue por linha seca, até o Ponto P-01, início da descrição deste perímetro. OBS: 1 - Base cartográfica utilizada na elaboração deste memorial descritivo: SD.21-Z-A-I, Escala. 1: 100.000 - IBGE - 1976. 2 - As coordenadas geográficas citadas neste memorial são referenciadas ao Datum Horizontal SAD 69. Responsável Técnico pela identificação dos limites: Gilmar Campos Soeiro, Técnico Agrimensor, CREA nº 4.496/TD- MT.

Siglia Zambrotti Doria

Antropóloga - CGID/CGPT