Parecer ECONOMIA/GEOT nº 236 DE 17/10/2023
Norma Estadual - Goiás - Publicado no DOE em 17 out 2023
ICMS sobre serviço de transporte de lixo urbano. Bitributação. ISS x ICMS.
RELATÓRIO:
(...), presta serviços de coleta de resíduos não perigosos de origem doméstica, urbana e industrial.
Informa que participará de licitação junto à prefeitura de Morrinhos, mas que o serviço de transporte do lixo será realizado até um aterro sanitário em município vizinho, configurando-se, assim, transporte intermunicipal.
Aduz que o serviço a ser desempenhado está descrito no item 7.09 da Lei Complementar nº 116/2003, que trata do imposto sobre serviços. Porém, o inciso II do art. 4º do RICMS/GO menciona a incidência de ICMS no serviço de transporte intermunicipal.
Questiona se a transferência de resíduos sólidos urbanos do município gerador até o aterro sanitário, em outro município, é caracterizada como serviço de transporte intermunicipal a atrair a competência tributária estadual. Caso sim, pergunta qual a documentação fiscal exigida para acobertar a operação.
Esclarece que o serviço é precificado junto às prefeituras contratantes conforme o peso coletado ao final de cada período de apuração, após aferição dos fiscais municipais. Diante dessa peculiaridade, questiona se seria possível a celebração de um regime especial no intuito de facilitar o cumprimento das obrigações fiscais, com a emissão de um CT-e único após a ocorrência do fato gerador ou a utilização do CT-e OS previsto no Ajuste Sinief 36/2019.
Em síntese, são esses os termos da consulta.
FUNDAMENTAÇÃO:
O critério material da hipótese de incidência do imposto tem como núcleo o verbo “transportar”. A Constituição Federal de 1988 atribuiu aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituir o imposto sobre “prestação de serviço de transporte interestadual e intermunicipal” sem fazer menção ou referência à qualificação do que está sendo transportado. Deflui-se como consequência que o transporte pode ser de algo sem valor, de algo nocivo ou até perigoso. Não há relevância para a caracterização do serviço de transporte a natureza do objeto transportado.
Por outro lado, a Lei Complementar nº 87/1996, em seu art. 2º, II delimitou que o imposto sobre o serviço de transporte interestadual ou intermunicipal dependeria do tipo de objeto transportado. Pela redação da Lei Kandir a coisa transportada, para ser alcançada pela hipótese de incidência nela prevista, deveria estar compreendida no conceito de pessoas, bens, mercadorias ou valores. Veja-se:
Art. 2° O imposto incide sobre:
II - prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, por qualquer via, de pessoas, bens, mercadorias ou valores;
Impõe-se, portanto, fixar a natureza jurídica do lixo de modo a definir se os resíduos sólidos poderiam ser considerados bens, visto que indubitavelmente se afastam do conceito de mercadorias ou valores.
No Direito Civil, Silvio Rodrigues defende que coisa seria gênero e bem seria espécie. Para ele, "coisa é tudo que existe objetivamente, com exclusão do homem. Assim, o sol, a lua, os animais, os seres inanimados etc". Bens, por outro lado, seriam “coisas que, por serem úteis e raras, são suscetíveis de apropriação e contêm valor econômico" (Direito civil..., 2003, v. I, p. 116). Para o civilista, o lixo estaria fora do conceito jurídico de bem, posto configurar-se numa coisa abandonada e sem valor econômico.
No escol de Eduardo Marcial Ferreira Jardim, na obra ‘Dicionário jurídico tributário’ editada pela Saraiva, a palavra bem “significa objeto corpóreo destinado a uso pessoal, ou seja, trata-se de algo fora do comércio. Opõe-se a mercadoria, que significa produto corpóreo destinado ao comércio”.
Esse sentido também foi adotado pelo saudoso Ministro Aliomar Baleeiro, para quem “um sapato exposto numa vitrine é uma mercadoria, enquanto adquirido por alguém e uma vez calçado transforma-se em bem".
Seja para o direito civil ou para o direito tributário, o lixo de modo algum poderia ser considerado um bem. Por conseguinte, o transporte de resíduos sólidos urbanos até o aterro sanitário, mesmo quando situado em outro município, não é alcançado pela regra matriz de incidência do ICMS.
Se alguém é contratado para transportar ou remover lixo ou detritos para o respectivo aterro sanitário ou industrial, esse lixo é o objeto de uma relação jurídica que se estabelece entre o contratante e o contratado, relação esta que consiste em uma obrigação de fazer: o contratado tem a obrigação de remover o lixo ou os detritos, depositando-os no aterro sanitário ou industrial e o contratante tem do direito subjetivo de exigir do contratado o seu cumprimento.
Outrossim, o transporte intermunicipal dos resíduos sólidos se insere dentro do contexto de remoção e destinação final previsto no item 7.09 da lista de serviços da Lei Complementar nº 116/2003.
Com clareza meridiana, o §2º do art. 1º da LC 116/2003 dispõe que o imposto sobre serviços afasta a incidência de ICMS nos serviços de varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento, reciclagem, separação e destinação final de lixo, rejeitos e outros resíduos quaisquer:
Art. 1o O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.
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§ 2o Ressalvadas as exceções expressas na lista anexa, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadorias.
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7. Serviços relativos a engenharia, arquitetura, geologia, urbanismo, construção civil, manutenção, limpeza, meio ambiente, saneamento e congêneres.
7.09 – Varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento, reciclagem, separação e destinação final de lixo, rejeitos e outros resíduos quaisquer.
Vê-se, pois, que o serviço de transporte narrado na consulta é tão somente uma etapa do serviço de limpeza urbana previsto na lista de serviços do ISS, sendo de competência tributária municipal. De outro modo, haveria bitributação não prevista no ordenamento jurídico, já que o mesmo fato seria alcançado pelo imposto municipal e pelo imposto estadual.
Essa também foi a conclusão a que a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo chegou na resposta à consulta tributária 24617/2021, na qual definiu que a “movimentação do lixo está fora do campo de incidência do ICMS e não enseja a emissão de Nota Fiscal”.
Para acompanhar o transporte desse material, no que tange a eventual fiscalização estadual, seria suficiente um documento interno que mencione os locais de origem e destino, os dados do prestador do serviço, bem como a informação de que se trata de resíduos, de modo a permitir a identificação da situação fática, além das demais exigências acessórias previstas nas leis municipais e ambientais.
CONCLUSÕES:
Com base na legislação transcrita e nos argumentos expostos, a Gerência de Orientação Tributária entende que o serviço de transporte de resíduos sólidos urbanos até o aterro sanitário situado em município diverso do da coleta está fora do campo de incidência do ICMS, devendo ser tributado apenas a título de imposto sobre serviços, cuja competência, nos termos da Lei Complementar nº 116/2003, é municipal.
Como consequência, as obrigações acessórias igualmente são de competência municipal.
É o parecer, o qual submetemos a apreciação superior.
GOIANIA, 17 de outubro de 2023.
HELVECIO VIEIRA DA CUNHA JUNIOR
Auditor Fiscal da Receita Estadual