Parecer ADI nº 2.130-3 de 22/03/2000

Norma Federal - Publicado no DO em 11 out 2001

Parecer. ADI 2130-3/600. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Diferenças de Remunetação.

PARECER ADI Nº 2.130-3-600
MANIFESTAÇÃO DO ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.130-3/600
Requerente: Governador do Estado de Santa Catarina
Requerido: Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina
Relator: Exmº Senhor Ministro Celso de Mello

I - Do Papel do Advogado-Geral da União nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade

De início, cumpre tecer breve consideração sobre o papel reservado ao Advogado-Geral da União nos processos de fiscalização abstrata da constitucionalidade. Ressalte-se inicialmente que esse momento processual em que se solicitou a manifestação do Advogado-Geral da União não corresponde ao prazo para defesa do ato impugnado.

A competência prevista no § 3º do art. 103 da Constituição Federal é interpretada por este Egrégio Supremo Tribunal Federal no sentido de constituir um munus indisponível. Com efeito, assentou a Corte no julgamento da Questão de Ordem na ADIN nº 72/ES:

"Ação Direta de Inconstitucionalidade. Advogado-Geral da União: indeclinabilidade da defesa da lei ou ato normativo impugnado (Cf. art. 103, § 3º). Erigido curador da presunção da constitucionalidade da lei. ao Advogado-Geral da União, ou quem lhe faça às vezes, não cabe admitir a invalidez da norma impugnada, incumbindo-lhe sim, para satisfazer requisitos de validade do processo da ação direta, promover-lhe a defesa, veiculando os argumento de disponíveis." (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, RTJ 131/958)

No mesmo sentido, o decidido na Questão de Ordem na ADIN nº 97/RO - que orientou as considerações tecidas no julgamento da ADINQO 72/ES (RTJ 131/959) - possui a seguinte enunciação:

"Não existe contradição entre o exercício da função normal do Advogado-Geral da União, fixada no caput do art. 131, da Carta Magna, e o da de defesa de norma ou ato inquinado, em tese, como inconstitucional, quando funciona como curador especial, por causa do princípio da presunção de sua constitucionalidade." (Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 131/470)

Entendimento semelhante viu-se reiterado nos julgamentos do Agravo Regimental na ADINMC nº 1254/RJ (Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19.09.1997, p. 45530) e da ADINMC 1434/SP (Rel. Min. Celso de Mello, DJ 22.11.1996, p. 45684).

Parece oportuno ressaltar, contudo, o necessário reconhecimento de uma redução teleológica no alcance da norma inserta no § 3º do art. 103 da Constituição Federal. Com efeito, o Advogado-Geral da União, na condição de órgão constitucional, ostenta um "dever de fidelidade à Constituição" e, por conseguinte, o exercício de seu munus orienta-se igualmente por esse dever fundamental. A jurisprudência deste Colendo Supremo Tribunal Federal reconhece que, ao apreciar a constitucionalidade de determinada norma, a Corte assim procede em face de toda a Constituição. Dessarte, afigura-se legítima a pressuposição de que, uma vez examinada determinada tese jurídica, foram esgotados os argumentos relativos a sua legitimidade em face da integralidade do parâmetro de controle consubstanciado, pelo texto constitucional ("2. ..., pois, havendo, nesse processo objetivo, argüição de inconstitucionalidade, a Corte deve considerá-la sob todos os aspectos em face da Constituição e não apenas diante daqueles focalizados pelo autor. 3. É de se presumir, então, que no precedente, ao menos implicitamente, hajam sido considerados quaisquer fundamentos para eventual argüição de inconstitucionalidade, inclusive os apresentados na inicial da presente Ação:" ADIN 1896/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 18.02.1999, p. 4). Do mesmo modo, a eficácia erga omnes e o efeito vinculante - que, como sustentamos, são próprios à natureza e ao caráter bivalente do controle abstrato de normas (isto é, incorporando tanto as ações diretas de inconstitucionalidade como as ações declaratórias de constitucionalidade: vide, a respeito, MENDES, Gilmar Ferreira, A Ação Declaratória de Constitucionalidade: a inovação da Emenda Constitucional nº 3, de 1993, in MARTINS & MENDES, Ação Declaratória de Constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 1994, pp. 51-106) - impedem até mesmo o Advogado-Geral da União de recalcitrar na vinculação aos "fundamentos determinantes" das decisões anteriores e na sua observância quando da repetição de hipóteses normativas semelhantes. Por igual, é também o princípio da isonomia que impõe a aplicação da mesma orientação normativa - ou dos fundamentos determinantes da decisão aptos a caracterizar o efeito vinculante - às hipóteses normativas semelhantes. Por fim (e esta é a razão decisiva em face das exigências da jurisprudência desse Pretório Excelso), a existência de decisão anterior sobre a matéria elide a presunção de constitucionalidade da qual seria curador o Advogado-Geral da União.

Nessa medida, sustentar a obrigatoriedade de defesa do ato impugnado em havendo decisão anterior da Suprema Corte cujos fundamentos determinantes indicam a ilegitimidade do ato impugnado implicaria admitir a existência de um "Advogado da Inconstitucionalidade". Essa anomalia institucional é rigorosamente incompatível com os imperativos, a natureza e os efeitos da decisão típica do controle abstrato de normas - contrariando, de resto, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais (CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional & Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 1998, 2ª ed., p. 1097). Haver-se-ia, por conseguinte, de reduzir o alcance das exigências do § 3º do art. 103 da Constituição Federal para aquelas hipóteses em que inexiste prévia manifestação do Supremo Tribunal Federal acerca das questões fundamentais versadas no processo de controle abstrato de normas. Em havendo decisão da Corte Constitucional sobre a matéria, impõe-se ao Advogado-Geral da União, no cumprimento de seu dever de fidelidade à Constituição (como órgão constitucional que é), a adução de um ótimo de informações relativas à jurisprudência constitucional sobre a matéria e a atuação apta a viabilizar a máxima eficácia da ordem constitucional - e, em especial, a realização da missão da jurisdição constitucional.

Assim devem ser entendidas as considerações a seguir expostas.

II - Da Intervenção de Terceiros

Como sabido, o caput do art. 7º da Lei nº 9.868, de 1999, veda a intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade. Ressalte-se que a jurisprudência desta Excelsa Corte revelava-se já restritiva a esse respeito (AGRADIN 1286/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 06.10.1995, p. 22132; AGRADIN 575/PI, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 01.07.1994, p. 17495; AGREADIN 29/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 12.03.1991, p. 2462; ADIN nº 1254/RJ, Rel. Min. Celso de Mello; ADIN 459/SC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 17.08.1999, p. 20). Nada obstante, no julgamento do Agravo Regimental na ADIN 784/RS, admitiu-se forma mitigada de participação no processo de ação direta de inconstitucionalidade: "Simples juntada, por linha, de peças documentais apresentadas por órgão estatal que, sem integrar a relação processual, agiu, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, como colaborador informal da Corte (amicus curiae): situação que não configura, tecnicamente, hipótese de intervenção ad coadjuvandum. Os despachos de mero expediente - como aqueles que ordenam juntada, por linha, de simples memorial expositivo -, por não se revestirem de qualquer conteúdo decisório, não são passíveis de impugnação mediante agravo regimental (CPC, art. 504)" (Rel. Min. Celso de Mello, DJ 18.11.1994, p. 31392). Em verdade, vigente a Lei nº 9.868, de 1999, o § 2º do seu art. 7º determina que o "relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades". Acrescente-se, por fim, que, além de ampliar os elementos de cognição, uma tal medida coaduna-se com as exigências da doutrina constitucional contemporânea no sentido da abertura e da pluralidade hermenêutica no controle abstrato de normas (vide, a respeito, o breve, mas decisivo, estudo de Peter Häberle: Hermenêutica constitucional - A sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para uma interpretação pluralista e "procedimental" da constituição, Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1997).

Parece evidente, na espécie dos autos, a relevância da matéria - o que, de resto, viu-se já reconhecido no Despacho do Eminente Relator que determinou a presente manifestação. A isso, acrescente-se ser igualmente inquestionável a representatividade, no que toca tanto à pertinência temática em relação aos fins institucionais da entidade quanto ao conhecimento técnico e factual da matéria sob exame, da Associação dos Magistrados Catarinenses - AMC em se tratando de questão relativa à legitimidade de decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina que concede vantagem pecuniária ao Judiciário local. Atendidos se encontram, destarte, os requisitos autorizadores da participação da Associação dos Magistrados Catarinenses - AMC na forma do § 2º do art. 7º, observando-se inexistir a necessidade de concessão de prazo para manifestação uma vez que suas razões já se encontram nos autos.

III - Da Admissibilidade da Ação Direta de Inconstitucionalidade

Ao contrário do que sugere a Associação dos Magistrados Catarinenses - AMC, o ato impugnado na presente Ação é ato normativo. Com efeito, ostenta este ato os atributos da denominada lei em sentido material, isto é, cuida-se de norma dotada de um mínimo de generalidade e abstração - ainda que circunscrita aos magistrados catarinenses. A alegação de que a vigência de sua disciplina é transitória não afasta, todavia, seu caráter normativo. Do mesmo modo, como ressalta o Requerente, o ato impugnado regula matéria para a qual a Constituição exige lei em sentido formal - ou, ao menos, expressa autorização legal. De resto, a jurisprudência desta Corte é vasta no reconhecimento do caráter normativo de inúmeros atos congêneres àquele ora impugnado (ADINMC 695/DF, Rel. Min. Célio Borja, RTJ 141/419; ADIN 663/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 27.10.1995, p. 36330; ADIN 666/PE, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 152/444; ADIN 683/SC, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 10.09.1993, p. 17742, RTJ 150/50; ADIN 727, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ 04.11.1994, p. 29828; ADIN 684, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 25.04.1997, p. 15196; ADINMC 1652/MS, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 10.10.1997, p. 50884; ADINMC 1801/PE, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 22.05.1998, p. 2; ADINMC 1797/PE, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 05.06.1998, p. 2; ADIN 658/PE, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 15.03.1996, p. 7201). Por todas elas, transcreva-se parte da Ementa da ADINMC 1614/MG, verbis: "Para a ilustrada maioria, configura ato normativo autônomo, passível de ser atacado mediante ação direta de inconstitucionalidade, decisão de Tribunal prolatada em processo normativo, reconhecendo o direito dos servidores e juízes a certo reajuste de vencimentos, uma vez estendida a todo o quadro funcional" (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 27.03.1998, p. 2). Todas essas razões implicam reconhecer a natureza de ato normativo do objeto de controle da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Igualmente inquestionável revela-se a legitimidade ativa ad causam, impondo-se, destarte, seja conhecida a presente Ação.

V - Conclusão

Tendo em vista as considerações acima (e a despeito da interpretação conferida por esta Corte ao § 3º do art. 103 da Constituição Federal), não se pode deixar de afirmar a aparente ilegitimidade do objeto de controle da presente Ação. O dever de fidelidade constitucional do Advogado-Geral da União obrigou-o a expor as razões de fato e de direito relativas ao mérito da presente Ação - em particular aquelas decorrentes da jurisprudência, para todos vinculante, desse Egrégio Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas. Assevere-se que, dados a relevância da matéria (já reconhecida, como dito, no Despacho de fl. 300) e das teses jurídicas implicadas na impugnação (como acima exposto), a repercussão financeira da decisão para o Estado, o caráter unissubsistente dos atos de pagamento dos valores pretendidos e o fato de que a possível irreversibilidade seria configurada mais intensamente em desfavor do Erário, a concessão da cautelar pleiteada - caso assim decida esse Egrégio Supremo Tribunal Federal - haveria de ser dotada de efeito ex tunc. Em verdade, seria essa a única medida apta a impedir a consumação - ainda que parcial - de eventual lesão ao Erário decorrente da alegada violação da ordem constitucional. A possibilidade de concessão de efeito ex tunc em medida cautelar, além de expressamente prevista no § 1º do art. 11 da Lei nº 9.868, de 1999, viu-se reconhecida em inúmeras decisões, em hipóteses em tudo similares, deste Pretório Excelso (vide, entre outras, ADINMC 1652/MS, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 10.10.1997, p. 50884; ADINMC 1797/PE, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 05.06.1998, p. 2). Eram essas, Senhor Relator, as considerações que julguei cabíveis em atendimento ao Despacho de fl. 300 e cuja juntada aos autos ora se requer.

Brasília, 22 de março de 2000.

GILMAR FERREIRA MENDES

Advogado-Geral da União