Lei nº 18405 DE 21/06/2022

Norma Estadual - Santa Catarina - Publicado no DOE em 22 jun 2022

Determina às empresas locadoras de veículos estabelecidas no Estado de Santa Catarina o dever de informar ao Departamento Estadual de Trânsito (Detran) sobre a existência de delitos de apropriação indébita e estelionato que envolvam veículos de sua propriedade.

O Governador do Estado de Santa Catarina

Faço saber a todos os habitantes deste Estado que a Assembleia Legislativa decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º As empresas locadoras de veículos estabelecidas no Estado de Santa Catarina têm o dever de informar ao Departamento Estadual de Trânsito (Detran) sobre a existência de delitos de apropriação indébita e estelionato que envolvam veículos de sua propriedade.

Parágrafo único. (Vetado)

Art. 2º (Vetado)

Parágrafo único. Enquanto perdurarem as condições restritivas mencionadas no caput do art. 1º, o Certificado de Registro de Veículo deverá manter o nome da empresa locadora de veículos como proprietária.

Art. 3º O Chefe do Executivo, nos termos do art. 71, III, da Constituição Estadual, regulamentará o disposto nesta Lei.

Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Florianópolis, 21 de junho de 2022.

CARLOS MOISÉS DA SILVA

Juliano Batalha Chiodelli

Jairo Luiz Sartoretto

Giovani Eduardo Adriano

MENSAGEM Nº 1219

EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE, SENHORAS DEPUTADAS E SENHORES DEPUTADOS DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO

No uso da competência privativa que me é outorgada pelo § 1º do art. 54 da Constituição do Estado, comunico a esse colendo Poder Legislativo que decidi vetar o caput do art. 2º do autógrafo do Projeto de Lei nº 275/2021, que "Determina às empresas locadoras de veículos estabelecidas no Estado de Santa Catarina o dever de informar ao Departamento Estadual de Trânsito (Detran) sobre a existência de delitos de apropriação indébita e estelionato que envolvam veículos de sua propriedade", por ser inconstitucional, bem como o parágrafo único do art. 1º do referido autógrafo, por ser contrário ao interesse público, com fundamento no Parecer nº 239/2022, da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), e na Informação Técnica nº 208/2022, da Assessoria Jurídica da Polícia Civil do Estado de Santa Catarina (PCSC).

Estabelecem os dispositivos vetados:

Parágrafo único do art. 1º e caput do art. 2º

"Art. 1º .....

Parágrafo único. Para fins de comprovação da ocorrência dos delitos mencionados no caput, as empresas locadoras de veículos deverão fornecer ao órgão de trânsito estadual cópia do respectivo inquérito policial, emitido por autoridade competente.

Art. 2º O Detran adotará as providências necessárias para atualizar a Base do Sistema Estadual de Cadastro de Veículos, fazendo constar informações sobre a existência de restrições administrativas, com as expressões 'Apropriação Indébita' ou 'Ocorrência de Estelionato', com eficácia de inibir a transferência de propriedade do veículo.

....."

Razões do veto

O art. 2º do PL nº 275/2021, ao dispor sobre medidas que visam ampliar o leque de informações da Base do Sistema Estadual de Cadastro de Veículos para constar a existência de restrições administrativas decorrentes de crimes de apropriação indébita e estelionato, está eivado de inconstitucionalidade material, dado que contraria os princípios da independência e harmonia dos Poderes e da reserva de administração, ofendendo, assim, o disposto no art. 32 da Constituição do Estado (art. 2º da Constituição da República). Nesse sentido, a PGE recomendou vetá-lo, manifestando-se nos seguintes termos:

O Projeto de Lei (PL) em análise, em síntese, propõe que as empresas locadoras de veículo sejam obrigadas a informar ao Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN/SC) sobre a ocorrência de delito de apropriação indébita ou estelionato envolvendo veículos de sua propriedade.

[.....]

Todavia, quanto ao artigo 2º, verifica-se que o Projeto de Lei nº 0275.4/2021 confronta a vontade do constituinte e do Supremo Tribunal Federal, visto que a proposição, nesta hipótese, se apodera das atribuições do Chefe do Executivo, encartadas no art. 61, § 1º, da Constituição Federal de 1988 (CF/1988).

[.....]

Nesse vértice, ainda que com advento da Emenda Constitucional nº 32/2001 , que alterou art. 61, § 1º, II, "e", da CF/1988 , o STF compartilha o entendimento de que a 'estruturação e atribuições' dos órgãos da Administração Pública não foi retirada da incumbência do Executivo, competindo a este, inclusive, dispor mediante decreto sobre a organização e funcionamento da Administração (art. 84, VI, "a", da CF/1988):

"É inconstitucional lei estadual, de iniciativa parlamentar, que determinava que todos os órgãos que prestassem serviços de atendimento de emergência no Estado deveriam estar unificados em uma única central de atendimento telefônico, que teria o número 190. Essa lei trata sobre 'estruturação e atribuições' de órgãos da administração pública, matéria que é de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, 'e', da CF/1988). A correta interpretação que deve ser dada ao art. 61, § 1º, II, 'e' c/c o art. 84, VI, da CF/1988 é a de que a iniciativa para leis que disponham sobre 'estruturação e atribuições' dos órgãos públicos continua sendo do Poder Executivo, não tendo a EC 32/2001 tido a intenção de retirar essa iniciativa privativa. Ao contrário, tais matérias tanto são de interesse precípuo do Executivo que podem ser tratadas por meio de Decreto. STF. Plenário. ADI 2443/RS, Rel. Marco Aurélio, julgado em 25.09.2014." (Info 760)

Com o devido respeito, a comando manifesto do projeto de lei para que o Poder Executivo, em especial, para que o Detran adote "as providências necessárias para atualizar a Base do Sistema Estadual de Cadastro de Veículos, fazendo constar informações sobre a existência de restrições administrativas, com as expressões 'Apropriação Indébita' ou 'Ocorrência de Estelionato', com eficácia de inibir a transferência de propriedade do veículo", ultrapassa a competência de iniciativa do Poder Legislativo, adentrando àquelas privativas do Chefe do Executivo para iniciar o processo de legislar.

Por fim, é forçoso destacar que este artigo 2º do projeto de lei também representa uma supressão da discricionariedade administrativa, violando, portanto, a Reserva de Administração, corolário do princípio da Separação das Funções Estatais, insculpido no art. 2º da Constituição Federal.

Na espécie, é indubitável que a determinação para que o órgão de trânsito (DETRAN) adote as providências necessárias para atualizar a Base do Sistema Estadual de Cadastro de Veículos, fazendo constar informações sobre a existência de restrições administrativas, com as expressões "Apropriação Indébita" ou "Ocorrência de Estelionato", ainda que possa ter um intuito de proteção ao direito do consumidor, afronta a harmonia entre os Poderes, na medida em que o Poder Legislativo substitui o Executivo na gestão administrativa.

Constata-se, portanto, que a medida legislativa, ao detalhar de maneira prévia e detalhada a atuação do Poder Executivo, vulnerou a Reserva de Administração.

Segundo Rafael Carvalho Rezende, há duas espécies de reserva de administração: uma geral e outra específica. A primeira, associada à ideia de separação de poderes, pauta-se na vedação às invasões de um Poder no núcleo essencial das funções típicas de outro. Decorre da reserva geral a proibição voltada ao Legislativo e ao Judiciário para que esses Poderes, a pretexto de atuar no âmbito de suas funções típicas, não adentrem no campo da função administrativa, notadamente no mérito administrativo. Por sua vez, a reserva específica de administração configura-se quando o ordenamento jurídico - sobretudo, a Constituição - destacar determinada matéria da seara do Parlamento, atribuindo a competência para normatizá-las, exclusivamente, ao Poder Executivo.

Por meio dessa reserva, é defeso ao Poder Legislativo (ou quem exerça atipicamente a função legislativa) invadir o campo da execução de lei, próprio da Administração Pública. Em outras palavras, não é possível, a pretexto de se exercer a função legislativa, a invasão do espaço da função administrativa, seja pela utilização desnecessária e abusiva de leis de efeito concreto ou leis de caráter específico (afastando-se do caráter geral e abstrato dos atos legislativos), seja pela regulamentação legal exacerbadamente minuciosa nos campos em que se requer maior margem de atuação da Administração - por atos abstratos ou mesmo concretos. A razão a ser observada é que não se poderia adentrar em um "domínio de execução", de modo a "executar legalmente a lei".

Logo, extrai-se da reserva geral de administração um impedimento ao legislador de editar uma lei com descrição normativa excessivamente detalhada a ponto de inviabilizar o exercício da função administrativa, seja engessando indevidamente a atuação da administração pública em concreto (não dando abertura para a atuação do poder discricionário, quando recomendável), seja por perder a lei, sem motivo justificável, seu caráter material de ato geral e abstrato, ou, ainda, por restringir o campo do poder regulamentar, quando esse for recomendável.

A fim de esclarecer o que vem a ser a Reserva de Administração, vale colacionar entendimento do Supremo Tribunal Federal - STF, in verbis:

"O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. (.....) Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais." [RE 427.574 ED, rel. min. Celso de Mello, j. 13.12.2011, 2a T, DJE de 13.02.2012] Nessa trilha, ainda é oportuno reproduzir conclusão de julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que destaca a existência de ofensa ao Princípio da Separação dos Poderes pelas razões ora delineadas:

"Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei nº 5.067/2015 do Município de Mauá. Lei, de iniciativa parlamentar, que obriga as empresas de transporte municipal coletivo de passageiros a inscrever, nas duas laterais e na parte dianteira externa dos veículos, seu ano de fabricação. Matéria de cunho eminentemente administrativo. Ofensa ao princípio da separação dos poderes. Competência privativa do Executivo Municipal usurpada. Aumento de despesa, ainda, que afronta o planejamento global municipal. Violação aos artigos 30, inciso I, e 167, inciso II e parágrafo 3º, da Constituição Federal; 5º, 25, 47, incisos II e XIV, e 144, 174, inciso III, e 176, inciso I, da Constituição Estadual; artigos 52 e 54 da Lei Complementar 101/2000 . Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da lei. (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2259160-16.2015.8.26.0000, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator: Sérgio Rui, Julgado em 13.04.2016). Pelo exposto, o inciso II do artigo 2º é substancialmente inconstitucional."

[.....]

Portanto, em que pesem os nobres propósitos da propositura, ao dispor sobre medidas que visam ampliar o leque de informações da Base do Sistema Estadual de Cadastro de Veículos para constar a existência de restrições administrativas decorrentes de crimes de apropriação indébita e estelionato, amplificando alcance do princípio da defesa do consumidor, é forçoso destacar que o acréscimo do artigo 2º representa uma supressão da discricionariedade administrativa, violando, portanto, a Reserva de Administração, corolário do princípio da Separação das Funções Estatais, insculpido no art. 2º da Constituição Federal e art. 32 da Constituição Estadual de Santa Catarina.

Diante do exposto, conclui-se pela constitucionalidade e legalidade dos artigos 1º, 3º e 4º do autógrafo do Projeto de Lei nº 0275.4/2021, e pela inconstitucionalidade do seu art. 2º.

Por sua vez, o parágrafo único do art. 1º do PL nº 275/2021, ao restringir a forma de comunicação ao DETRAN dos crimes de apropriação indébita e estelionato por meio do fornecimento de cópia dos respectivos inquéritos policiais, apresenta contrariedade ao interesse público, dado que, além de se tratar de procedimento de caráter sigiloso, nos termos do art. 20 do Decreto-Lei federal nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), sua conclusão pode demorar consideravelmente. Nesse sentido, a PCSC, por meio de sua Assessoria Jurídica, apresentou manifestação contrária à sanção do referido dispositivo, com base nas seguintes razões:

[.....] entende-se, data maxima venia, que a comprovação da ocorrência não pode ficar adstrita à apresentação, pela empresa, de cópia do inquérito policial ao Detran, conforme previsto no parágrafo único do art. 1º do Autógrafo em questão. É que tal procedimento, além de sigiloso (artigo 20 do CPP), pode demandar vários meses para ser concluído, a depender da complexidade do caso.

Assim, o ideal é que a anotação dos crimes no sistema do Detran seja possível a partir da apresentação, pela empresa vítima, do registro do boletim de ocorrência àquela Autarquia.

Oportuno destacar que tal sistemática já é adotada em relação aos crimes de furto e roubo de veículo automotor, cujo registro de ocorrência já deflagra anotação no sistema do Detran.

[.....]

Sugere-se, todavia, veto ao parágrafo único do art. 1º [.....].

Essas, senhoras Deputadas e senhores Deputados, são as razões que me levaram a vetar os dispositivos acima mencionados do projeto em causa, as quais submeto à elevada apreciação dos senhores Membros da Assembleia Legislativa.

Florianópolis, 21 de junho de 2022.

CARLOS MOISÉS DA SILVA

Governador do Estado