Despacho FUNAI nº 6 de 26/01/2011
Norma Federal - Publicado no DO em 27 jan 2011
Aprova as conclusões objeto do citado resumo para, afinal, reconhecer os estudos de identificação da Terra Indígena IRAPUÁ, de ocupação do grupo indígena Guarani Mbyá, localizada no município de Caçapava do Sul, Estado do Rio Grande do Sul.
O Presidente da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, tendo em vista o que consta no Processo FUNAI/0704/1995, e considerando o Resumo do Relatório de Identificação, de autoria da antropóloga Sheila Maria Guimarães de Sá, que acolhe, face às razões e justificativas apresentadas,
Decide:
Aprovar as conclusões objeto do citado resumo para afinal, reconhecer os estudos de identificação da Terra Indígena IRAPUÁ de ocupação do grupo indígena Guarani Mbyá, localizada no município de Caçapava do Sul, Estado do Rio Grande do Sul.
MÁRCIO AUGUSTO FREITAS DE MEIRA
ANEXORESUMO DO RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO DE IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DA TERRA INDÍGENA IRAPUÁ
Referência: Processos FUNAI/BSB nº 0704/1995, 1º e 2º vol., 0708/1995 e 1019/1995; Memorando nº 957/CGID/FUNAI/BSB de 28/11/2007; Decreto nº 1775/1996; Portaria nº 14/1996 do M.J. Denominação: Terra Indígena Irapuá. Localização: Município de Caçapava do Sul, Estado do Rio Grande do Sul. Superfície: 222 ha (duzentos e vinte e dois hectares), aproximadamente. Perímetro: 8 km (oito quilômetros), aproximadamente. Sociedade Indígena: Guarani Mbyá. População: 16 famílias, num total de 57 pessoas (dezesseis famílias, cinqüenta e sete pessoas) (2006). Identificação e Delimitação: - Grupos Técnicos constituídos pelas Portarias PRES. FUNAI nº 011/1999 e nº 1342/2006 (Adequação), coordenados respectivamente pelos antropólogos Carlos Alexandre Barboza Plínio dos Santos e Sheila Maria Guimarães de Sá.
INTRODUÇÃO
Os trabalhos de campo junto aos índios Guarani Mbyá ocorreram em três diferentes tempos: 1º) Grupo de Trabalho Portaria FUNAI nº 1.136/1993; 2º) Port. FUNAI nº 011/1999 e 3º) Proposto pela Port. FUNAI nº 1342/2006, quando me desloquei para a área visando dar continuidade aos procedimentos administrativos de identificação e delimitação da T.I. Irapuá.
Na perspectiva de compreender suas demandas territoriais os acompanhamos aos locais mais significativos para caracterizar o seu modo de vida, tendo em vista o fato de não habitarem dentro do perímetro da área reivindicada, encontrando-se na situação de moradores de beira de estrada da União, na região do rio Irapuá.
Em cumprimento as determinações legais a nós atribuídas, tendo como referência o Decreto nº 1775/96 e a Portaria nº 14/96/MJ, não houve como ignorar os estudos e a identificação realizada anteriormente:
1º) Porque a história e a memória do povo Guarani se articulavam em torno das narrativas de dor de seus antepassados e das longas caminhadas em busca dos territórios descritos e reconhecidos como tradicionais Guarani, presentes nos estudos anteriores, na historiografia e na literatura antropológica.
2º) Porque os dados etnográficos, históricos e ambientais que davam suporte à proposta anterior continuavam vigentes na proposta articulada então com os Guarani.
3º) Porque a continuidade da dilapidação dos recursos naturais necessários ao bem-estar Guarani por terceiros, no interior da área originalmente identificada, os colocava em alerta em busca de uma possível solução positiva, pois embora estivessem acampados fora dos limites propostos, continuavam a ocupar a região do rio Irapuá e a reafirmar a reivindicação da demarcação da área.
A Terra Indígena Irapuá encontra-se localizada na antiga Sesmaria da Palma, no lugar denominado Irapuá ou Invernada, onde no passado estabeleceram-se os chamados "homens pretos", cujos descendentes hoje reivindicam o reconhecimento do Quilombo Cambará (em estudo, 2008), sendo portanto parte do mesmo complexo territorial objeto do esbulho de terras realizado desde o período colonial. Irapuá é parte de uma área de proteção ambiental da mata ciliar do rio Irapuá, ameaçada constantemente pelas fazendas da região.
I - DADOS GERAIS
As pesquisas arqueológicas e etnohistóricas das diferentes situações, pré e pós contatos, vividas pelos Guarani, bem como pesquisas etnográficas atuais, apontam para uma uniformidade presente, no tempo e no espaço, entre os Guarani de séculos anteriores à conquista e seus descendentes vivos nos dias de hoje. Demonstram ainda que os Guarani são conhecidos no Rio Grande do Sul desde 475 D.C., quando apareceram suas primeiras aldeias no alto Jacuí, Essas pesquisas atestam a imemorialidade da ocupação Guarani na bacia do rio Jacuí, que tem o rio Irapuá como seu afluente.
No Rio Grande do Sul (antigo Tapes) até o começo do século XVIII, a língua Tupi-Guarani era dominante. Analistas da língua Guarani, afirmam que esta língua vem da família Tupi-Guarani, originária do Tronco Tupi, com características próprias que a distingue de outros conjuntos, dos quais fazem parte o Guarani Antigo, o Mbyá, e algumas outras línguas. A língua é um importante fator de etnicidade e preservação da cultura Guarani Mbyá. No cotidiano costumam expressar-se somente em Guaraní, e ao dirigirem-se aos não-indígenas o fazem em português.
As migrações (Oguatá) constituem uma das características do modo de ser específico Guarani. O entendimento dessas migrações é crucial para se compreender o ethos cultural Guarani. Elas são caracterizadas por avanços descontínuos, tanto locais como temporais, e estão relacionadas não só com o processo histórico de desterritorialização, desencadeado pelos conquistadores nos séculos XVI e XVII, mas também com os Guarani anteriores à conquista colonial, que buscavam conscientemente seu tekoa (local em que viveriam segundo seus costumes), impulsionados por pajés que orientavam as andanças. Consta na literatura que o principal motivo que teria levado os pajés ao profetismo das andanças, seria um iminente e terrível apocalipse de que somente se salvariam caso trilhassem o caminho da Terra sem Mal (Yvy Marã Ey) situada no além-mar do nascente.
Os três subgrupos em que os Guarani se divide no Brasil - Mbyá, Nhandéva e os Kaiwá -, sem perder a identidade enquanto etnia, apresentam modos de ser específico. Hoje, somente os Mbyá têm as Oguatá, ainda como sua característica.
Alguns autores consideram que na atualidade a procura Guarani por terras volta-se, talvez prioritariamente, para áreas efetivamente "terrestres" reais, concretas e economicamente produtivas. Consideram que a procura de uma terra "sem estragos", chegou a se identificar provavelmente com a procura de terra "sem mal", tendo ai economia e mito se desdobrado em dois momentos separados, mas se confundindo em um só movimento. É o Yvy marãñe'y, significante polissêmico na etnohistória Guarani. Assim podemos afirmar que fatores concretos e objetivos provocaram as migrações e translados, e que os fatores subjetivos, do âmbito da cosmologia e da lógica religiosa, têm uma importância crucial nessas andanças. Meliá (1981:11) (Garlet, 1997). A ideologia de vida desses índios se baseia no princípio da terra nova, fresca e boa, ou seja, a Terra sem Mal.
Resumo Histórico - Os Guarani no Estado do Rio Grande do Sul e a Região do Rio Irapuá
Nem todos os Guarani foram submetidos ao sistema colonial e à catequese jesuítica. Aqueles que fugiram ao contato com os europeus mantendo-se arredios nas matas e reproduzindo o seu modo de vida tradicional, foram conhecidos desde o século XVIII como Ka'yguá ou Cainguás (Métraux 1948:70). Os Ka'yguá (habitantes da selva), são reconhecidos hoje como ancestrais do subgrupo Mbyá, que mantém na memória reminiscências de como fugiram dos espanhóis e portugueses quando da invasão de seu território (Cadogan: 1950). Nas matas conseguiram uma "invisibilidade" com relação à população não índia circundante.
Derrotados na "Guerra Guaranítica", famílias indígenas acompanham Gomes Freire de Andrade - governador do Rio de Janeiro e Minas Gerais e chefe das tropas do exército e da comissão de limites, se distribuindo pelo território riograndense. Muitos se estabelecem à margem esquerda do rio Jacuí, nas imediações da atual cidade de Cachoeira do Sul (Porto, 1954: 414 -418). A aldeia de Cachoeira é então levantada sob as ordens do governador da Província, em 1769. Cachoeira logo se tornou ponto de passagem de tropas para o interior, e continuou recebendo índios fugidos das Missões. Em fins do sec. XVIII a capela levantada pelos índios na aldeia é elevada à categoria de Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira. Consta que Caçapava do Sul, vizinha de Cachoeira, teria nascido de um aldeamento indígena Tupi-Guarani cujo significado do nome seria "clareira na mata" (IBGE, 1959; 69).
Entre os sesmeiros povoadores das terras ao Sul do Rio Jacuí, estava Manoel Gomes Porto, que em 1784 recebeu a sesmaria denominada Palmas, na qual se estabeleceu com sua família, seus gados e escravos, localizada entre os arroios Irapuá e Palmas. A terra que havia recebido por sua participação como Alferes de uma Companhia de Cavalaria na tomada do Forte do Continente de São Pedro seria dividida entre seus herdeiros após sua morte.(Porto, 1929)
Freire (1994) informa que somente na década de 40, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) começou a administrar alguns toldos indígenas do Rio Grande do Sul. Os relatórios anuais do SPI entre as décadas de 40 e 60, citam ainda que os Guarani Mbyá habitavam áreas reduzidas das reservas indígenas dos Kaingang.
A reforma agrária feita em terras indígenas e a expansão colonizadora nas terras dos Mbyá na Argentina e no Paraguai na década de 60, fizeram com que se intensificasse a mobilidade Mbyá. Segundo Venzon (1993:171) os índios dirigiram-se para vários locais da Lagoa dos Patos e regiões do litoral do Rio Grande do Sul, tais como: Itapoã, Barra do Ribeiro, Camaquã, Osório e outros. Inúmeras famílias que realizaram esta mobilidade passaram pelo acampamento do Irapuá, BR 290, local de extrema importância para as oguatá Mbyá.
Uma breve cronologia da ocupação dos índios Guarani Mbyá no Irapuá nos últimos 30 anos, nos indicam que o aumento ou a diminuição da população num acampamento Mbyá depende de vários fatores, e comprovam que o acampamento no Irapuá está permanentemente habitado, sendo variável o número de pessoas.
"1974, vindo da aldeia de Salto do Jacuí, chega ao Irapuá Benito Oliveira e sua família, fixando moradia às margens da rodovia BR 290, antes da primeira ponte, no sentido Porto Alegre - Uruguaiana;(...) 1980, Benito e família partem para a aldeia de Pacheca. Permanece no Irapuá Lourenço Oliveira, dividindo a área com a família extensa de Antônio Gimenez, aí estabelecida a partir desse ano;(...);1983, Benito Oliveira e família voltam ao Irapuá. Há uma grande concentração de índios na região. Além do acampamento existente, é criado um novo acampamento às margens de um afluente do Irapuá, o arroio Pedro Paulo (Garlet, 1994: 6);1984 - 1990, a partir desse ano, até 1990, as famílias de Benito Oliveira e do seu irmão Juacinto Oliveira, além de Antônio Gimenez, deslocam-se para a região de Osório (Barra do Ouro, Três Forquilhas). Juacinto Oliveira, conhecido karaí-opyguá, vinha de São Francisco de Assis (na fronteira), em busca de um tekoa no litoral do Rio Grande do Sul. Um número indeterminado de famílias nucleares permanece no Irapuá, sem deixar de realizar oguatá até Salto do Jacuí, Tapes e Camaquã. Entre elas, as famílias de Naldo Gonçalves e Carlito Pereira, que o nosso GT encontrou residindo em Salto do Jacuí (Garlet, 1994: 6); 1991 - 1992, Juacinto Oliveira e família retornam a Irapuá. Saindo de Barra do Ouro, Juancito aglutina algumas famílias sob sua liderança, cerca de 22 índios (Correio do Povo, 20/07/92). Permanecerá acampado na área de servidão da BR 290 até 1993, quando deslocase, com sua família, para Santa Maria. Seu irmão, Benito Oliveira, havia migrado com a família de Barra do Ouro para Santa Catarina; 1993, o GT encontra morando no Irapuá as famílias nucleares de Hélio Gimenez e Loureço Benitez, que não acompanharam o deslocamento de Juancito para a fronteira. O filho deste, Candido Oliveira, há poucos meses viajara para Salto Grande do Jacuí, vindo a residir com o genro Carlito Pereira." (Proc. FUNAI nº 0704/1995, fls. 22-23). De 1993 até hoje várias famílias Mbyá ali habitam, sendo que a área do acampamento é muito reduzida e a terra para plantar, insuficiente.
II - HABITAÇÃO PERMANENTE
A visão que os Guaraní têm de seu território e as bases que foram fundadas para que tal terra fosse por eles identificada, perpassa pela tradição, construída pelas histórias de origem deste grupo, que narram precisamente de onde vieram os primeiros ancestrais, suas viagens e aldeamentos subseqüentes. Assim, não é apenas um meio de subsistência. Representa também o suporte da vida social e está diretamente ligada ao sistema de crenças e conhecimentos. É com base nessas tradições que os índios podem afirmar quais são os lugares em que podem construir seus tekoa.
A ordenação dos grupos Guaraní ao longo dos rios e dos litorais remonta à suas crenças no cataclismo que acabará com o mundo. Estando nesses lugares de ocupação histórica Guaraní, eles estão mais perto de Nhanderú (deus). Quando chegar o dia do cataclismo, ou seja, quando as águas invadirem a terra, os Guaraní seguirão os passos do pajé mítico que ultrapassou o mar e foi morar com Nhanderú. A Terra Indígena Irapuá segue exatamente os preceitos míticos, religiosos e socioculturais, que são um dos suportes do modo de ser Guaraní (teko). Se não existirem locais adequados (tekoa) - que reúnam condições físicas e estratégicas que permitam a sobrevivência de uma família extensa com chefia espiritual própria, um espaço político-social baseado na prática religiosa e na agricultura de subsistência - o Guarani não pode sobreviver. "Sem tekoa não há teko".
O lugar escolhido pelos Guaraní não é único e nem definitivo. Não é único porque os Mbyá reconhecem todo o território que foi ocupado por seus antepassados, envolvendo uma imensa área que atravessa o Paraguai, norte da Argentina, Uruguai e regiões Sul e Sudeste do Brasil como território Guaraní (Freire: 1994 26). Não é definitivo, visto que os Mbyá se mudam para outros tekoa, a partir de um leque de motivações tais como: cisões políticas, religiosas, vontade em aproximar-se de um grupo familiar mais amplo, busca de melhores condições de sobrevivência, pressões exercidas por regionais e principalmente a noção de terra boa ou má. Em território brasileiro os Guarani somam aproximadamente trinta mil pessoas.
Outra característica dos Guaraní Mbyá é a reocupação de áreas que foram, por algum motivo, abandonadas em um dado momento. Estas mesmas áreas são passíveis de reocupação no futuro pelo mesmo grupo familiar ou por outros grupos familiares pertencentes à mesma etnia. "Há que se considerar que os Guarani tem ocupado seu território e suas áreas através de dinâmicas tradicionais, 'segundo seus usos e costumes', de acordo com as reais possibilidades de exercê-los. A sua tradicionalidade, não sendo totalmente traduzível, é explicitada também, e mais visivelmente, pela negação em assimilar o modelo econômico de produção do branco, apesar de todas as dificuldades em que se encontram." (Ladeira, 2001;106)
Acampamento dos Mbyá no Irapuá
Podemos recuperar os quatro momentos de relatos mais recentes nos quais os Mbyá estão inseridos vivendo em situação de acampados no Irapuá.
1º) Nos anos 1970, quando segundo a história oral dos atuais protagonistas indígenas Mbyá, Virgílio Benitez, líder de seu grupo familiar (família extensa), junto com outras famílias "abriu" a área da região do rio Irapuá. Com 72 anos (em 2006), narrou que realizou várias andanças e retornou à região do Irapuá no início dos anos 1980 permanecendo lá até então;
2º) Em 1993, quando o GT Portaria nº 1136/1993, encontrou-os localizados na área de servidão da BR 290, a um quilômetro das quatro pontes sobre o rio Irapuá. (Proc. FUNAI nº 0704/1995, fls. 30-33). Existiam então duas casas, habitadas por uma família extensa - a família de Lourenço Benitez - e um casal Mbyá - Albino Cesário e Anita Benitez. "Em meados de 1992, moravam no Irapuá 22 índios, distribuídos em cinco famílias (Correio do Povo, 20/07/1992). Esse lugar correspondia à quarta localização perto do rio Irapuá, sendo que as três anteriores eram às margens do rio: duas ao lado e/ou embaixo das pontes da BR 290, e a terceira, dois quilômetros rio acima, quando na década de 70 estabeleceram a única aldeia do Irapuá, num terreno cedido por um fazendeiro. Era uma ocupação numa área de 30 X 100 m., escolhida por ter uma pequena mata, não muito longe do rio onde obtinham parte de seu sustento. Plantavam então um pequeno roçado de milho, em torno de 15 m², e áreas ainda menores de batata doce, feijão e melancia;
3º) Em 1999, o GT Portaria nº 011/1999 encontrou-os acampados próximo ao rio Irapuá, existindo 3 casas e 1 rancho. As casas (Oo) seguiam o padrão Mbyá, são pequenas construções de duas águas (duas superfícies planas que constituem um telhado, formando um V invertido), feitas com troncos (cortados a machado de forma longitudinal) ou bambu fincados no chão, amarrados a uma travessa, no sentido horizontal, com cipó guaembé. O teto das habitações é feito com travessas de bambu ou finos barrotes de madeira cobertos com folhas de pindó (pindovy), palmeira que tem referências mitológicas para os Mbyá (v. Cadogan: 1959, 28-37) ou capim kapii ou o guaricanga, material muito utilizado nas construções Guarani. As paredes são trançadas de vara e, em geral, são revestidas de lona plástica para impedir a entrada do vento frio. As lonas pretas também são utilizadas no telhado, na falta dos materiais citados.
Com base nas informações colhidas no relatório do primeiro GT (1993), e nas dos índios, o segundo GT (1999) juntamente com as lideranças indígenas do Irapuá, concluiu que a delimitação deveria não só abarcar parte da mata ciliar do rio Irapuá como também duas nascentes, objetivando a não poluição do arroio existente na área.
O território reconhecido pelos Guarani tem uma perspectiva sócio-regional que ultrapassa seus limites territoriais e é revelada pela categoria guará, expressão que significa um conjunto de aldeias unidas por laços de parentesco e reciprocidade (Susnil, 1983; Almeida, 1985). Desta forma, um tekoa faz parte "de um complexo geográfico que compreende outras aldeias Guarani Mbyá, onde cada uma delas é fundamental para manutenção de reciprocidade e organização social e política do grupo" (Ladeira,1994:4).
4º) Em 2006, o GT Portaria nº 1342/2006 estivemos no acampamento Mbyá referenciado a T.I. Irapuá, localizado então, na fronteira dos municípios Cachoeira do Sul e Caçapava do Sul. Encontramos 16 (dezesseis famílias) morando na área de "servidão" da BR 290, km 298, num total de 57 (cinquenta e sete) pessoas, sendo 29 adultos e 28 jovens e crianças. Segundo Silvino Verá da Silva, 41 anos, atual líder político em Irapuá, são 37 jovens e crianças, pois alguns jovens encontram-se em visita a parentes em outras áreas no RS e SC. Silvino chegou no Brasil há vinte anos, vindo da Argentina, onde seus oito irmãos residem, e esta vivendo no Irapuá há oito anos. Silvino informou que Marcelina Esquivel, 79 anos, é uma kunhã karai/líder religiosa, e que havia chegado no Irapuá com seu grupo familiar, num total de seis famílias nucleares, há apenas três meses, vindos do Salto do Jacuí. Marcelina nos informou ainda que mais oito pessoas de sua família iriam chegar no Irapuá até dezembro de 2006. Estariam apenas aguardando a venda de sua produção de artesanato para conseguir recursos para realizar o deslocamento. Segundo Marcelina sua família vinha em busca de segurança alimentar, pois no Irapuá há fatura de peixe e mel, ambos parte da dieta tradicional guarani, e de matéria prima para confecção do artesanato. Marcelina Esquivel reafirma assim a visão do pajé Juancito Oliveira de que o Irapuá era uma terra guarani antiga, um "lugar bom", cheio de recursos naturais, faltando somente um lugar para a aldeia, os roçados e a construção de uma casa de reza (Opy).
A Terra Indígena Irapuá foi identificada e delimitada com duzentos e vinte e dois hectares com aproximadamente oito quilômetros de perímetro e corresponde a reivindicação territorial atual dos Guarani Mbyá acampados na região do rio Irapuá (local de moradia) e que se utilizam de sua mata ciliar de modo tradicional. As dezesseis famílias acampadas aguardam a definição da área para ocupá-la fisicamente como local de moradia e área de uso, visando à constituição futura de um tekoa Mbya.
III - ATIVIDADES PRODUTIVAS
A economia doméstica dessas famílias está baseada no cultivo de pequenas lavouras, na caça e na coleta de frutas nas matas ciliares do rio Irapuá e na pesca. A venda de artesanato adquiriu hoje papel importante nessa economia haja vista a falta de terras para a lavoura e o fato da facilidade de sua venda no acostamento da estrada e na sede do município de Cachoeira do Sul, que dista aproximadamente cinquenta quilômetros do acampamento. Os balaios ou cestos (ajaka) são o produto de maior aceitação pelos turistas argentinos que se deslocam na estrada a procura das praias do litoral catarinense durante o verão. Os balaios coloridos são mais trabalhosos, porém vendem mais. Nesse período é grande a movimentação na estrada e também as vendas de artesanato. Os "bichinhos" - esculturas de animais da fauna da área: cobra, coruja, tatu, etc. -, confeccionadas em madeira (corticeira), exclusivamente pelos arte sões do sexo masculino, encontram boa saída dependendo da qualidade do produto. Dependendo da perícia do artesão podem ser mais ou menos elaborados, ou mais bem acabados, alcançando melhor aceitação e melhores preços. Os Mbyá também trabalham por curtos períodos para os fazendeiros vizinhos e por diárias.
Para confecção de suas cestas utilizam a taquara, um bambu pequeno, que é encontrado na mata perto do rio Irapuá. Para a fabricação de arcos utilizam-se da parte central da palmeira (pindó) e da fibra de cipó guaembé. O chocalho, mbaracá mirim, é usado durante a reza e como os arcos e flechas para além do objetivo original sua fabricação também assumiu um objetivo comercial. A confecção do artesanato é tradicionalmente tarefa feminina mas, atualmente, alguns homens também a executam. A coleta da taquara e da envira para decoração é tarefa masculina. A venda do artesanato é atribuição daquele que confeccionou as peças ou de seu grupo familiar. Parte da renda obtida com a venda do artesanato é convertida em bens alimentares destinados ao consumo doméstico, para a compra de sabão, sal e, ainda, para a aquisição de roupas, ferramentas, pilhas e para a realização de viagens.
Embora a mata existente na T. I. Irapuá, em seus limites oeste, norte, e parte da região central, apresente pequenas dimensões, sua composição florística é bastante diversificada. Tal fato, que aliado ao pleno domínio que os Guaraní Mbyá detêm das espécies existentes em sua área, permite o aproveitamento econômico de grande parte dos recursos florestais para a produção de artesanato, consumo alimentar, fins medicinais e rituais, colocando as atividades de coleta como a principal dentro do contexto sócio-econômico indígena. Comum a quase todas as comunidades indígenas, é de se ressaltar o conhecimento que os Guaraní Mbyá dispõe sobre o uso medicinal, sob diversas formas, de várias espécies vegetais. O conhecimento da mata e seus recursos, bem como sua forma de manejo tradicional é uma característica cultural dos Mbyá.
A pequena mata ainda preservada, tem uma grande importância no contexto ambiental e fundiário sulriograndense, visto que se constitui em um dos últimos refúgios de espécies ameaçadas de extinção.
Para caçar pássaros como nhambu e jacu, na mata ciliar do rio Irapuá, os índios realizam a caça de espera, quando utilizam-se do conhecimento que dispõe sobre a inter-relação destas espécimes com árvores e plantações. Os pássaros são pegos em arapucas ou abatidos por estilingue. A distribuição dos animais abatidos, realizada por quem os matou, beneficia todas as famílias da comunidade. A reciprocidade é o princípio que rege a distribuição interna na sociedade Guaraní.
Predominantemente masculina, com eventual contribuição das mulheres nas tarefas mais leves, a agricultura é uma atividade na qual os indígenas despendem boa parte de seu tempo, trabalhando nos tratos culturais de formação e manutenção de suas roças. Estas por sua vez, situam-se próximas às casas, permitindo maior facilidade de acesso e fiscalização da produção. As roças são voltadas basicamente à subsistência do grupo, caracterizando-se como 'roça de toco', onde a vegetação nativa é derrubada e posteriormente queimada para a implantação de novas áreas de cultivos. Utilizadas por 2 ou 3 anos consecutivos, são deixadas em pousio, a fim de evitar o esgotamento do solo e permitir a recomposição de parte de sua fertilidade natural. Suas roças geralmente apresentam dimensões aproximadas de cerca de 2ha e, embora pequenas, apresentam uma boa produtividade. Os Guarani cultivam diferentes variedades de milho, principalmente o "milho Guaraní", milho tradicional (Avatchi paraii). O "milho dos brancos" também é plantado. O ciclo do milho estabelece o calendário social e religioso dos Guarani. E engloba várias família de um, ou de vários tekoa. Quando colhem os produtos agrícolas, os Mbyá invocam Pa'í Reté Kuaray (divindade fundadora da ciência médica, também considerado o Pai dos Guaraní Mbyá).
IV - MEIO AMBIENTE
Localização
A Terra Indígena Irapuá situa-se na porção sudeste do Rio Grande do Sul, na região ecoclimática definida como Depressão Central do estado, pertencente à microrregião do Vale do Jacuí, localizada no município de Caçapava do Sul, à margem esquerda do rio Irapuá, que divide aquele município com o de Cachoeira do Sul, distando-se à aproximadamente 200 km à oeste de Porto Alegre, pela BR-290 que liga esta capital à Argentina.
Os trabalhos realizados delimitaram-na com uma superfície aproximada de 222 ha, cujos pontos extremos estão referenciados pelas seguintes coordenadas geográficas aproximadas: Norte, 30º 19'46''S e 53º 11'20''WGr; Leste, 30º 20'28''S e 53º 10'59''WGr; Sul, 30º 20'49'' e 53º 12'39''WGr; Oeste, 30º 20'38''S e 53º 12'47''WGr.. A área situa-se à 235m de altitude com relação ao nível do mar.
A facilidade que se tem de ingresso à área, percorrendo cerca de 3km por uma estrada de terra à partir da BR 290, e sua proximidade com centros urbanos como os de Porto Alegre, Caçapava do Sul e Cachoeira do Sul e, principalmente, por sua localização privilegiada próximo à BR-290, onde se localiza o ponto de venda de seus artesanatos, possibilitará aos Mbyá condições satisfatórias ao escoamento e comercialização de sua produção artesanal e dos possíveis excedentes agrícolas, além de permitir, entre outras oportunidades, o acesso à saúde, à educação, à obtenção de insumos e bens de consumo, quando necessários.
Clima
A Terra Indígena Irapuá encontra-se inserida na região ecoclimática pertencente ao clima temperado do tipo mesotérmico brando, de características super úmido, apresentando uma temperatura média anual em torno de 18,5º C, umidade relativa variando entre 1.400mm e 1.800 mm, com cerca de 110 a 120 dias de chuva, uniformemente distribuídas ao longo do ano, não se verificando a existência de uma estação seca bem definida. Por localizar-se abaixo do Tópico de Capricórnio, inserida em latitudes subtropicais, está sujeita à ação de frentes frias, de origem polar, responsáveis por invernos rigorosos, sendo que em julho, ocorrem as temperaturas anuais mais baixas. Na primavera/verão, encontramos uma maior intensidade das atividades sócio-econômicas praticadas pelo grupo, devido às condições climáticas amenas, favorecendo sobremaneira o incremento das atividades agrícolas, caça, pesca e coleta, devido a uma maior oferta de espécies animais e vegetais neste período.
No verão, a temperatura situa-se em torno de 23º a 26º C., e os Mbyá dedicam a maior parte de seu tempo à produção e venda de artesanato principalmente nas praias gaúchas, ou na BR-290.
Relevo, Pedologia e Vegetação
Face às suas inerentes características pedológicas podemos classificar os solos existentes na T.I. Irapuá como pertencentes a 3 tipos: aluviais; planossolos hidromórficos e Podzólicos Vermelho/Amarelo.
No limite leste, verificamos solos aluviais, sendo também encontrados, restritos a uma estreita faixa de terras marginais situadas ao longo dos cursos d'água presente em seus limites nordeste, sudeste, sudoeste e por toda a porção central do território. O seu aproveitamento deverá se dar pela manutenção da cobertura de mata ciliar, que lhes permitirá o desenvolvimento das atividades de caça e coleta. No limite centro-leste e em parte do centro-oeste, a T.I. Irapuá apresenta predominância de terreno de topografia plana. E a ocorrência de planossolos hidromórficos ocupando as regiões de depressões do terreno em áreas sujeitas à inundações periódicas ou mesmo de caráter permanente. O aproveitamento econômico destes solos deverá ser pela manutenção da vegetação nativa, nas matas ou nos campos, permitindo as atividades de caça, coleta e criação de animais. No limite norte (as matas), oeste e em pequena parcela da porção sul (os campos), verifica-se em menor proporção o terreno suave ondulado. E a ocorrência de solo podzólicos vermelho/amarelo, típicos de regiões florestais de clima úmido. Estes solos ocupam as regiões de maior altitude desta área apresentando como uma de suas características principais, uma boa drenagem, dificilmente sujeito ao encharcamento, salvo em algumas depressão do terreno. Apresentam condições adequadas à implantação das casas dos índios Guarani Mbyá, e para a atividade agrícola e criação de animais. Servindo de forma secundária a prática da caça e coleta nos locais revestidos pela cobertura florestal.
Os solos existentes na T.I. Irapuá possuem algumas restrições:
1) apresentam-se ainda rasos e com nítida deficiência de drenagem;
2) constatação de sua baixa fertilidade natural e de sua acidez elevada. Visando a melhoria das condições produtivas, torna-se necessário realizar a correção tanto da acidez quanto da fertilidade dos solos existentes nesta terra indígena.
No limite norte e em uma pequena parcela do limite sul da área eleita verifica-se a ocorrência da floresta estacional decidual, caracterizada por apresentar um estrato arbóreo emergente onde predomina o angico, associada à outras espécies como a grápia o angico emergente, a cabriuva e louro e umbu. No território delimitado predominam gramineas geófitas dos gêneros Paspalum e grama-jesuita, a primeira na região sudeste-nordeste do território e a segunda nas regiões de coxilhas situadas em seu limite sudoeste e oeste. Nesta área também é verificada a ocorrência da estepe gramineo-lenhosa.
É importante observar que a hidrografia da área e as matas ciliares do rio Irapuá são referências antropogeográficas e ambientais que definem o desenho da Terra Indígena Irapuá.
Hidrografia
A Terra Indígena Irapuá insere-se na sub-bacia hidrográfica do rio Irapuá, a qual se constitui parte da sub-bacia hidrográfica do rio Jacuí, e ambas pertencentes à bacia hidrográfica do rio Guaíba, que por sua vez desemboca na lagoa dos Patos, próximo a Porto Alegre, na região centro-leste do estado. Verifica-se no interior desta terra indígena, a formação de uma micro bacia hidrográfica pertencente a um arroio, cuja denominação não foi possível de ser identificada em campo, que corre, desde sua nascente principal situada no limite sudoeste da terra delimitada, cerca de 2,5 km, no sentido oeste-leste, até desaguar na margem esquerda no rio Irapuá, que por sua vez, representa um dos principais afluentes da margem direita do rio Jacuí. Além deste, verifica-se no interior da T. I. Irapuá a ocorrência de outro arroio, também desconhecido, afluente da margem direita do primeiro, cuja nascente localiza-se à cerca de 500 m fora do limite sul estabelecido, e também de uma sanga (que apresenta dimensões um pouco maior que a de um arroio), não identificada, a qual se constitui parte do limite nordeste do território indígena delimitado e que também deságua na margem esquerda do rio Irapuá.
O rio Irapuá se constitui no limite a leste da terra indígena delimitada. O Irapuá por ser o principal curso d'água deverá ser utilizado pelo grupo da mesma forma como hoje vem sendo, ou seja, na atividade de pesca. Outra possível forma de uso deste rio seria para a navegação com canoas, permitindo aos Guarani Mbyá um rápido acesso ao local onde vendem seus artesanatos, localizado às margens da BR-290, próximo à ponte sobre o arroio Pedro Paulo, afluente da margem esquerda do rio Irapuá.
V - REPRODUÇÃO FÍSICA E CULTURAL
Aspectos da Cosmologia Guarani
Em todas as etnias existem maneiras de ver o mundo, o homem e as coisas (as cosmologias). Assim os mitos de origem, construção e do fim da sociedade Guarani são fundamentais para o conhecimento de algumas regras que definem os conceitos desses índios sobre "mundo" (terra).
No plano terrestre o mundo Mbyá é formado pela dimensão do seu território tradicional e pelos tekoa (aldeias), fragmentos da terra, que, através de sua distribuição ordenada no mapa "original", representam os suportes e estruturas desse mundo (Ladeira, 1992)
Segundo a mitologia Guarani ocorreu um Incêndio Universal e um Dilúvio Universal, que teria destruído uma Terra anterior. Há também a crença numa destruição do mundo no futuro, porém, em sua forma atual, o mundo encerra elementos do mundo que existirá no futuro. Portanto, Os Guarani Mbyá acreditam num Dilúvio iminente, num Incêndio Universal ou, ainda, numa prolongada escuridão. Percebemos que na atualidade a representação do paraíso aparece em estreita ligação com a cataclismologia. Antes que sobrevenha a inelutável catástrofe é necessário alcançar a Terra sem Males ("yvy marãey"), o lugar em que seus moradores estão livres, sobretudo das doenças e da morte.
Para alcançar esta Terra, os Guarani necessitam de fé, de um bom pajé (líder religioso) e estar no litoral perto da "Terra sem Males", pois no plano simbólico, consideram que o "criador" originou a construção do mundo Mbyá em alguns lugares do litoral. Esses lugares, procurados ainda hoje pelos Mbyá, apresentam elementos da flora e da fauna típicos da Mata Atlântica, formações rochosas e mesmo ruínas de edificações antigas, indícios que confirmam essa tradição. Os Mbyá são extremamente tradicionais do ponto de vista da religião e procuram fundar suas aldeias com base nos preceitos míticos que fundamentam especialmente a sua relação com as matas a qual, simbólica e praticamente, condicionam sua sobrevivência. Formar aldeias nesses lugares "eleitos", como é o caso da Terra Indígena Irapuá, significa estar mais perto do mundo celestial pois para muitos, é a partir desses locais que o acesso a "yvy marãey" ("Terra sem Males") - objeto histórico perpetuado pelos Mbyá por meio de seus mitos - é facilitado.
Nos lugares "eleitos" os Mbyá constroem também, a casa sagrada (Opy) onde praticam suas cerimônias e rituais religiosos. Este é o local onde são ouvidas as belas palavras (porahei) proferidas pelos xamãs e são realizados os rituais como o batismo do milho (ritual de nomeação das crianças, quando recebem o seu nome Mbyá sonhado pelo pajé), funerais, rituais de cura, casamentos, etc). A opy tem também função social na comunidade, pois em seu interior toda problemática é discutida nas reuniões. Diariamente os Guarani realizam seus rituais, que tem início no final da tarde e podem durar horas ou mesmo a noite inteira. Para eles, somente as rezas entoadas coletivamente possuem força para alcançar o local onde moram as divindades. No entanto, as rezas cantadas individualmente são consideradas importantes para a formação do Guarani. As rezas são sempre cantadas e acompanhadas pela dança praticada por homens e mulheres em uma coreografia simples. O violão manuseado pelos homens, o bastão-rítmico de taquara, utilizado pelas mulheres, e o cachimbo (petynguá), cada adulto tem o seu, são utensílios importantes para o ritual. A fumaça "abre o caminho para a reza", e "no entendimento da reza" por parte das divindades. O cumprimento das normas de conduta assegura à comunidade a comunicação com o sobrenatural. E é o compromisso da comunidade com seu nadereko que propicia a eficácia de seus pajés.
Para a concretização do nandereko é fundamental que a comunidade se assente sobre um lugar que reúna condições básicas Para que existam condições necessárias à fixação de um tekoa é preciso que haja mata, que seja distante do branco e que não haja conflitos. O tekoa não é apenas uma terra. A ele estão associados a casa, as relações de parentesco, o lugar onde rezam, e enterram seus mortos, e o direito divino de fazer suas roças de milho. As matas ciliares, as nascentes, o córrego, os locais para fazerem suas roças de milho, a construção da Opy (casa de reza) constituem, entre outros, a base da existência dos Guarani Mbyá neste mundo. A Terra Indígena Irapuá reúne todos estes elementos importantes para a reprodução física e cultura dos Mbyá.
Organização Social Guarani
A organização social Guarani baseia-se na família extensa, ou seja, família composta do pai/sogro, filhos solteiros, filhas casadas e genros. Os Mbyá casam-se muito jovens, as mulheres entre a primeira e a segunda menstruação, por volta dos 13, 14 anos, e os rapazes quando apresentam razoável controle sobre as técnicas de cultivo e de construção de armadilhas para a caça. No acampamento do Irapuá, a modalidade de residência é matrilocal, podendo o homem construir sua residência ao lado da casa da família da esposa (ou então passa a morar, temporariamente, com os pais de sua mulher). Neste tipo de modalidade, é comum exigir-se do marido que trabalhe para os sogros, caçando, pescando ou cuidando da roça durante certo período de tempo; é o chamado "serviço da noiva".
O pajé e o cacique são as únicas autoridades que podem desfazer e celebrar um casamento. O casamento pode ser um fator de estabelecimento de alianças entre comunidades Guarani, ou apenas uma ligação entre famílias. Os casamentos também geram uma grande mobilidade espacial e social, pois os homens solteiros realizam constantes viagens sobre o território em busca de esposas, além dos frequentes rearranjos das famílias extensas a partir dos casamentos e da dissolução deles. A separação é algo normal, pois consideram que se duas pessoas brigam muito não é bom para o espírito delas que continuem juntas. Neste caso, os filhos tendem a ficar com a mãe, principalmente quando muito pequenos. A infância é uma fase do aprendizado social e as crianças são totalmente integradas na vida comunitária, sendo sua socialização de responsabilidade da comunidade e não exclusivamente de seus pais. Não há lugar nem contexto onde uma criança não possa ser admitida, nem há recintos nem assuntos "impróprios para menores". Os brinquedos infantis são miniaturas dos instrumentos usados pelos adultos.
Após a morte é costume dispor sobre a sepultura alguns objetos pessoais do morto. Também são colocados galhos de árvore, cuja finalidade é possibilitar aos espíritos andarem pela mata. Junto a cada sepultura também é colocada uma vasilha com água, objetivando reter os espíritos maus, evitando que eles causem atropelos ou "encarnem" nos vivos. Após a morte de um membro da aldeia os Mbyá reúnem-se por três dias na Opy, onde cantam, dançam e rezam para que a alma do morto possa seguir seu destino. Nesses rituais, o uso do cachimbo petynguá é essencial, pois por meio da fumaça o Pajé limpa o corpo do morto e todo o ambiente.
Dado ao fato de que as condições de sobrevivência nos acampamentos são muito penosas, algumas famílias não residem neles por muito tempo. Segundo o indigenista Francisco Witt entre janeiro e setembro de 2007 Lourenço Benitez, Naldo Gonçalves e Silvino Benitez empreenderam com suas famílias novas oguatá (andanças) de acordo com seu modo tradicional de viver. As demais famílias permaneceram no Irapuá aguardando a demarcação da Terra Indígena Irapuá.
VI - LEVANTAMENTO FUNDIÁRIO
Este estudo iniciado em 2006 encerra uma sequência de trabalhos realizados desde a década anterior e reafirma o levantamento fundiário realizado em abril de 1999 e a proposta de demarcação da Terra Indígena Irapuá com aproximadamente duzentos e vinte e dois hectares de superfície e o perímetro aproximado de oito quilômetros.
Atualmente os Guaraní Mbyá estão morando numa faixa de servidão da estrada federal BR 290, esperando a demarcação de suas terras por parte do governo federal, para depois entrarem na área por eles reivindicada, ou seja, os 222 hectares delimitados.
A Terra Indígena Irapuá, localiza-se na antiga Sesmaria das Palmas, no lugar denominado Irapuá ou Invernada. Incide totalmente na propriedade do Senhor Herocil Correa da Silva, segundo as matrículas de nº 9.349, 580 e 581, expedidas pelo Ofício dos Registros Públicos da Comarca de Caçapava do Sul/RS.
Dentro da área identificada não existe moradores ou mesmo residências que indiquem qualquer tipo de habitação. Quanto ao valor econômico da benfeitoria é zero, haja vista que não existem benfeitorias na área delimitada.
Cabe informar que o valor médio do hectare, para fins de avaliação de áreas rurais dentro do município de Caçapava do Sul, varia por regiões assim avaliadas: terras inferiores R$ 280,00 (Duzentos e oitenta reais) por hectares; terras intermediárias R$ 480,00 (Quatrocentos e oitenta reais) por hectares;
terras próprias para plantio de arroz R$ 620,00 (Seiscentos e vinte reais) por hectares. Os dados acima são da Divisão de Terras Públicas da Secretaria da Agricultura e Abastecimento para o ano 2000.
Administrativamente, a Terra Indígena Irapuá situa-se na área de abrangência da Coordenação Regional/FUNAI de Passo Fundo (2010).
VII - CONCLUSÃO E DELIMITAÇÃO
A partir da reconstituição da história Guarani, verificamos que os índios possuíam um "Território Guarani" definido em uma região específica, hoje inserida no Paraguai, norte da Argentina, parte do Uruguai e parte do Brasil. Neste Território, a sociedade Guaraní se organiza a partir de grupos de parentesco e afins, em torno de uma liderança religiosa e/ou política. Com a desterritorialização advinda do processo de colonização, houve uma fragmentação do território Guaraní, levando-os a uma de população claramente notada naquelas regiões. O território Guaraní hoje é descontínuo e fragmentado, mas é ainda reconhecido pelos Guaraní por meio de uma reatualização do herói Pa`i Rete Kuaray (o pajé mítico) que, em suas perambulações pelo mundo, marcou os lugares adequados aos Guaraní. Lugares esses que devem ser respeitados e priorizados na organização dos espaços de uso e locais de moradia.
As narrativas míticas e os depoimentos dos informantes dispostos neste trabalho são uma confirmação de que Irapuá representa uma parte do "mundo Guarani", cercado de significantes e significados da cultura Guaraní Mbyá. Os tekoa Guaraní são fundamentais para a reprodução física e cultural da sociedade Guaraní, o tekoa Irapuá proporcionará os recursos ambientais imprescindíveis à realização de suas atividades produtivas principais e a necessária privacidade para a construção da casa ritual (opy), onde se desenvolvem as cerimônias religiosas do grupo. Entendemos ainda que a área delimitada, possui uma dimensão espacial e uma configuração ambiental que garante na atualidade o mínimo de condições adequadas de vida à comunidade indígena Guaraní Mbyá, e que estas condições de vida não devem ser contempladas sob o ponto de vista meramente econômico, devendo consistir, também e necessariamente, em condições viáveis para a livre manifestação das tradições sócio-culturais dessa comunidade indígena.
A partir das reuniões realizadas com os Guaraní Mbyá durante os trabalhos do Grupo Técnico e pesquisas feitas com os índios em todos os limites desta Terra Indígena, elaborou-se a proposta de criação da Terra Indígena Irapuá. Os trabalhos de identificação e delimitação foram feitos com base nos estudos de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, bem como no levantamento fundiário realizado no local e nos Cartórios de Registro de Imóveis da Comarca Caçapava do Sul. Essa proposta contou com o acolhimento da comunidade indígena Mbyá bem como dos participantes do referido Grupo Técnico. A proposta de criação da Terra Indígena Irapuá ora apresentada com base nos trabalhos realizados pelo Grupo Técnico Portaria/FUNAI/PRES. nsº 011/99 e 1342/2006, atende aos requisitos estabelecidos pelo Decreto nº 1.775/1996, e pela Portaria nº 14/1996. A Terra Indígena Irapuá contém as áreas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar e à reprodução física e cultural dos Guarani Mbyá segundo seus usos, costumes e tradições.
Pelo exposto e com base no art. 231 da Constituição Federal de 1988 e pelo Decreto nº 1.775/1996, propomos a criação da Terra Indígena Irapuá e que esta seja delimitada e demarcada com uma superfície aproximada de 222 hectares e perímetro aproximado de 8 km, conforme Mapa e Memorial Descritivo de Delimitação anexos.
SHEILA MARIA GUIMARÃES DE SÁ
Antropóloga-coordenadora do GT - Portaria nº 1342/PRES.FUNAI/2006 (Adequação)
MEMORIAL DESCRITIVO
Partindo do Ponto 01, de coordenadas geográficas aproximadas 30º 20'38"S e 5 3º 1 2 ' 4 7 " W G r, localizado à margem de uma estrada existente, segue por uma linha reta até o Ponto 02, de coordenadas geográficas aproximadas 30º 19'55"S e 53º 11'30"WGr; daí segue por uma linha reta, até o Ponto 03, de coordenadas geográficas aproximadas 30º 19'46"S e 53º 11'20"WGr, localizado à margem direita de uma sanga sem denominação; daí segue pela referida sanga, a jusante, até o Ponto 04, de coordenadas geográficas aproximadas 30º 19'54"S e 53º 11'13"WGr, localizado na sua confluência com o Rio Irapuá; daí segue pelo referido rio, a montante, até o Ponto 05, de coordenadas geográficas aproximadas 30º 20'28"S e 53º 10'59"WGr; daí segue por uma linha reta, até o Ponto 06, de coordenadas geográficas aproximadas 30º 20'49"S e 53º 12'39"WGr, localizado à margem de uma estrada existente; daí segue pela referida estrada, sentido BR-290, acompanhando a cerca existente, até o Ponto 01, início desta descrição. Obs.: 1- Base Cartográfica utilizada na elaboração deste memorial: SH.22-Y-A-II-4 - Escala 1:50.000 - DSG - Ano 1979. 2- As coordenadas geográficas citadas neste memorial descritivo são referenciadas ao Datum Horizontal Córrego Alegre. Responsável Técnico pela Identificação dos limites: Sandra Barcelos Coelho Engª Agrimensora, CREA 66.724/D - MG.