Despacho FUNAI nº 24 de 12/06/2008

Norma Federal - Publicado no DO em 17 jun 2008

Aprova as conclusões objeto do citado resumo para afinal, reconhecer os estudos de identificação da Terra Indígena ALDEIA VELHA de ocupação do grupo tribal Pataxó, localizada no Distrito de Arraial D'Ajuda, Município de Porto Seguro, Estado da Bahia.

O PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI, tendo em vista o que consta nos Processos FUNAI/BSB/0760/98 e 0132/99, e considerando o Resumo do Relatório de Identificação, de autoria da antropóloga Leila Silvia Burger Sotto-Maior, que acolhe, face às razões e justificativas apresentadas, decide:

1. Aprovar as conclusões objeto do citado resumo para afinal, reconhecer os estudos de identificação da Terra Indígena ALDEIA VELHA de ocupação do grupo tribal Pataxó, localizada no Distrito de Arraial D'Ajuda, Município de Porto Seguro, Estado da Bahia.

MÁRCIO AUGUSTO FREITAS DE MEIRA

ANEXO
RESUMO DO RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO DE REVISÃO DE LIMITES DA TERRA INDÍGENA ALDEIA VELHA

Referência: Processos FUNAI/BSB/0760/98 e 0132/99 da Terra Indígena Aldeia Velha - Distrito de Arraial D'Ajuda Município de Porto Seguro, Estado da Bahia. Superfície: 2.001 ha hectares e perímetro de 24 km Sociedade indígena: Pataxó. População: 624 indivíduos (2007). Identificação e Delimitação: Grupo Técnico constituído pela Portaria nº 1.236/PRES/06, coordenado pelo antropólogo Jorge Luis de Paula, e complementado pela Portaria nº 338/PRES/07, coordenado pela antropóloga Leila Sílvia Burger Sotto-Maior.

1-DADOS GERAIS

Segundo Grunewald (1999:78) a classificação de uma família lingüística Pataxó é muito incerta. O autor demonstra que eles já foram incluídos por alguns pesquisadores no mesmo grupo Jê dos Maxakali e por outros como um grupo lingüístico independente, em pé de igualdade com os Maxakali. Enquanto alguns encontraram vocábulos Pataxó e Maxakali muito semelhantes, outros encontraram muito diferentes. Este autor informa que Metraux e Nimuendaju (1946) discutiram o possível inter-relacionamento entre as línguas Pataxó, Maxakali e Malali. Loukotka (cf. Metraux e Nimuendaju, 1946) dissera que estes constituíam uma família isolada. Urban (1998), incluindo-os entre os Macro-Jê, alega, no entanto, a dificuldade de se saber as filiações genéticas neste grupo. Silva (1974) teria confrontado material lingüístico obtido em campo (cerca de 120 palavras), concluindo que se tratava de uma língua distinta dos Maxakali, mas pertencente ao mesmo tronco; porém, um outro especialista, examinando o mesmo material, teria informado que pertencia à língua Maxakali. Paraíso (1994) sustenta que Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanoxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni seriam subgrupos de uma mesma nação, a Tikmu'un.

Aqueles grupos acima citados, conjuntamente com os chamados "Botocudos", Aimorés, Gueréns ou Grens, além de grupos de línguas do tronco Tupi, como os Tupiniquim ou Tupinaki e os Tupinambá; dominavam, disputavam e compartilhavam o território assim constituído: no interior, pelas bacias do Rio Doce, do Rio Mucuri, do Rio Jequitinhonha e do Rio Pardo; no Litoral, por toda a extensão de áreas costeiras compreendidas entre aqueles rios, entre o atual estado de Espírito Santo e a cidade de Ilhéus.

Ainda hoje, existem aldeias e terras pertencentes aos Pataxó espalhadas por toda esta região: no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, nos municípios de Carmésia e Guanhães; no litoral e interior do Extremo Sul da Bahia, nos municípios de Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália, Itabela, Itamaraju e Prado e na região cacaueira do Sul da Bahia, nos municípios de Pau Brasil, Camacã, Itaju da Colônia e Camamu.

O atual grupo étnico Pataxó, contudo, não pode ser considerado, de forma alguma, como uma mera continuidade do grupo que historicamente é referido habitando aquela região. Na sua conformação atual há que se considerar uma série de fatores que os levaram a passar por um processo comum a outros grupos indígenas das regiões sudeste e nordeste do país, ao qual Oliveira Fº. se refere como "mistura"; tendo como característica a passagem por um longo período de "invisibilidade" e um processo historicamente recente de "emergência". Porém, no caso Pataxó há uma série de outros fatores particulares constitutivos desse processo, especialmente o fato de haver uma "mistura forçada" de grupos étnicos distintos entre si e com setores marginalizados da população não-índia, especialmente negros e "nativos", processada como política deliberada de dominação.

O nome da T.I. Aldeia Velha, com o qual os Pataxó, e também os regionais, se referem às terras em estudo, e especialmente ao local onde está situada a Fazenda Santo Amaro, é uma referência ao antigo aldeamento de Santo Amaro (daí o próprio nome da fazenda), que naquele local existiu no Séc. XVI. Mascarenhas (1998:67) confirma a existência desta aldeia citando Denis (1980 [1838]), o qual se referiu à aldeia Santo Amaro informando que esta teria sido destruída pelos índios "abatiras" no ano de 1564 e Gandavo (1980 [1570/1576]) o qual também fez referência a esta aldeia.

Um mito regional, registrado por Casal (1976, in Mascarenhas, 1998:67), e que segundo Mascarenhas tem sua estrutura ainda narrada por nativos da localidade de Vale Verde, dá conta da destruição da Aldeia Santo Amaro e da fundação da Aldeia da Patatiba.

Esta foi oficialmente reconhecida com o nome de Aldeia do Espírito Santo dos Índios e depois Vila Verde, constituindo-se no atual distrito de Vale Verde. Uma outra versão, bem mais romanceada, do mesmo mito foi registrada na obra "Sob os céus de Porto Seguro", da Diretoria de Cultura e Divulgação do Estado da Bahia, publicada no ano de 1940, com o título de "O sacrifício de Ynaiá".Como se sabe, foi na região de Porto Seguro onde desembarcaram os primeiros portugueses chegados ao Brasil na frota de Cabral. Porém, os índios que ali encontraram, naquele momento, não foram os Pataxó, mas sim grupos do Tronco Tupi, os chamados Tupiniquim (Sampaio, 2.000: 123).

Pesquisas arqueológicas, contudo, afirmam que a ocupação Tupi no litoral do nordeste havia se dado em período historicamente recente (há menos de 1.000 anos, segundo Maestri, 1995:09) e que estes provavelmente expulsaram dali outros grupos Macro-Jê, dos quais se encontram vestígios arqueológicos em períodos mais antigos (Sampaio, 2.000: 123).

Na T.I. Aldeia Velha encontram-se vários sítios arqueológicos de importância fundamental para os índios Pataxó, especialmente como marco de referência, tanto geográfica quanto histórica e cosmológica. Por solicitação dos Pataxó e por intermédio do Coordenador do GT anterior, foram realizados levantamentos arqueológicos na área por uma equipe da Universidade Federal da Bahia, coordenada pelo Prof. Carlos Etchevarne. A equipe cadastrou 06 sítios e apresentou relatório, concluindo que: "... na fazenda Santo Amaro existem indicadores sobre instalações de populações reconhecidamente indígenas pré-coloniais e pós-coloniais". Os sítios, resumidamente, foram assim descritos no relatório: 1) SÍTIO BURANHÉM I; 2) SÍTIO BURANHÉM II; 3) SÍTIO SANTO AMARO I; 4) SÍTIO SANTO AMARO I; 5) SÍTIO SANTO AMARO II; 6) SÍTIO SANTO AMARO III.

Outro forno, porém, com características construtivas diferentes dos anteriores, apesar de usar material semelhante. Possui uma única câmara com estrutura retangular, medindo 1,76 x 0,77na parte interna. Tem paredes laterais e uma das longitudinais feitas com adobe numa espessura de 15 a 18 cm, enquanto uma outra parede tem espessura de 55 cm. Sua altura aproxima-se à dos outros. A equipe de arqueólogos concluiu seu relatório afirmando que o território da Fazenda Santo Amaro tem grande potencial em sítios arqueológicos referentes a populações indígenas pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais. Porém, a possibilidade de reconhecer sua filiação cultural e estabelecer uma cronologia apurada dependeria da realização de estudos sistemáticos. Infelizmente, pelo que soubemos, até hoje isto não foi possível.

Na área de campo, verificamos a presença de sítios com acúmulo de sementes de dendê processadas para extração de óleo, concentrações de árvores de dendê e coco-da-bahia, além de poças e buracos há muito tempo utilizados para extração de barro e locais de queima e descarte de tijolos e telhas inutilizados.

A Capitania de Porto Seguro foi doada em 1535 a Pero de Campos Tourinho, o qual ergueu na foz do Rio Buranhém a Vila de Porto Seguro, em posição estratégica para sua defesa, tanto dos ataques indígenas vindos do interior, quanto contra os inimigos vindos do mar.

Já nos primeiros anos de ocupação tratou-se de trabalhar pela conversão dos índios ao cristianismo. Atacando diretamente a sua cultura encontrava-se a forma mais eficiente para minar suas resistências.

Tal tarefa foi exercida com empenho pelos padres jesuítas, os quais criaram as missões, cuja organização as tornavam um misto de unidade territorial, administrativa, produtiva, eclesiástica e militar.

Para elas os índios eram levados pelo convencimento ou pela força, sendo esta a maioria das vezes a causadora do convencimento. Entre as táticas utilizadas pelas missões estava a de congregar, em um só local, índios de grupos e línguas distintas, muitas vezes deslocando-os para regiões distantes de seus próprios territórios, o que dificultava a fuga e a articulação entre eles. Outra tática era o incentivo à mestiçagem entre grupos indígenas diferentes e também com portugueses, o que acabava por minar a sua resistência cultural.

Cercados de todos os lados, os povos que foram forçados ao contato tornaram-se economicamente dependentes das relações comerciais com os portugueses, foram forçados ao trabalho escravo ou servil e também forçados à miscigenação. Mais agravante ainda para estes foi a depopulação provocada pelo alastramento de epidemias trazidas pelos europeus. De tal forma, ao fim do século XVI, não mais havia índios Tupiniquim livres na região do Descobrimento (Sampaio, 2.000:124). A essa época as próprias missões implantadas pelos jesuítas na região, as quais haviam chegado a mais de uma dezena, entre as quais a Aldeia de Santo Amaro, também estavam extintas, restando apenas as aldeias de São João Batista (atualmente Trancoso) e da Patatiba (também conhecida como Patativa, Vila Verde e atualmente Vale Verde).

Inicialmente, a ocupação se deu exclusivamente nas regiões litorâneas, na qual foram fundadas as primeiras vilas e missões. A penetração do interior visava exclusivamente a captura de índios e a exploração da madeira. Somente no século XVII a população litorânea, já estabilizada, dá início à efetiva ocupação das terras do interior. Esta se dá seguindo principalmente as vias de acesso fluviais, em cujas margens vão sendo implantados cultivos de subsistência e pontos de exploração madeireira. Esta ocupação veio ser consolidada somente durante o ciclo da cana-de-açúcar.

Porém, na região de Porto Seguro a implantação dos engenhos não foi bem sucedida, principalmente em virtude da forte resistência de grupos indígenas oriundos do interior, aqueles do Tronco Macro-Jê entre os quais estavam os Pataxó e outros grupos conhecidos como Botocudos ou Aimorés. É a partir deste período que passamos a ter também maior quantidade de fontes escritas sobre a região e sobre os índios que a habitavam. A partir destas fontes, especialmente de Wied-Neuwied (1817), conhece-se a localização dos grupos aí existentes. Conforme Sampaio (2.000:125), esquematizamos assim esta localização:

Botocudos (também chamados Gren, Gueréns e recebendo outras várias denominações locais): limitavam-se ao sul no Rio de Santa Cruz (ou João de Tiba) e ao norte no Rio Pardo, suas principais concentrações estavam ao longo do Rio Jequitinhonha, dominavam também a região da foz do Rio São Mateus (ou Cricaré) e mantinham concentrações ao longo do Rio Doce;

Kamakã (também chamados Meniã): situavam-se mais ao interior na região do Rio Pardo, tinham uma aldeia na foz do Jequitinhonha e também dividiam com os Botocudo terras situadas no nordeste de Minas Gerais;

Família linguística Maxakali (composta por vários grupos com denominações distintas): também dividiam com os Botocudo e kamakã a região nordeste de Minas Gerais, concentrando-se nos vales do Jequitinhonha e Mucuri e compartilhando com os Pataxó o território entre o Rio João de Tiba e o São Mateus.

Pataxó: dominavam toda a faixa do extremo sul baiano, compartilhando com os Maxakali, os quais supõe-se serem da mesma família lingüística, o território entre o Rio João de Tiba e o São Mateus, porém mantendo suas maiores concentrações mais próximas à costa. Apesar de tudo, estes índios ainda manteriam uma situação de relativa independência até meados do século XIX, quando toda a população indígena ainda existente no extremo sul da Bahia já estaria concentrada junto às vilas costeiras, forçadamente trazidas para serem submetidas a serviço dos regionais. Carvalho (1977) fornece notícias deste período citando, por exemplo, um Ofício do Governador da Bahia, datado do ano de 1805, dando conta de que, tendo encarregado o Capitão-Mor de Porto Seguro de "explorar as barras e rios de sua capitania", teria este encontrado na região onde está hoje situada a Aldeia de Barra Velha plantações pertencentes aos índios que dali haviam sido retirados para a Vila do Prado "para se aproveitarem de melhor comércio e se civilizarem".

A criação da Aldeia de Barra Velha e a gênese dos Pataxó atuais No ano de 1861 em função de conflitos entre os índios e regionais e diante da possibilidade legal de reivindicarem as terras que ocupavam na região, foi ordenada a concentração compulsória de toda a população indígena remanescente numa única aldeia, no local acima citado, na Barra do Rio Corumbau, onde haviam sido vistos vestígios dos índios Pataxó ainda arredios. Tal aldeia, cuja existência foi posteriormente registrada com o nome de Belo Jardim, é certamente, conforme Carvalho (1977) e Sampaio (2000), a atual Aldeia de Barra Velha, sendo tal nome decorrente da mudança, geologicamente comprovada, da foz do Rio Corumbau, após a instalação da aldeia. Essa concentração forçada obrigou a convivência definitiva dos Pataxó com índios remanejados dos outros aldeamentos, entre eles Maxakali, Botocudos, Kamakã e parte dos remanescentes Tupiniquim das aldeias de Trancoso e da Patatiba, também remanejados para que suas aldeias fossem transformadas em Vilas. Em Barra Velha a fusão destes grupos foi consolidada, prevalecendo o etnônimo Pataxó, possivelmente por ser a aldeia formada por um maior contingente deste povo e por estar situada em seu território tradicional (Sampaio, 2.000:126).

A complexa conformação da aldeia de Barra Velha é que vai permitir a existência de um sentimento de identidade entre todos os remanescentes indígenas da região, mesmo aqueles que fugiram à concentração forçada, permanecendo em pequenos núcleos familiares no interior da mata ou, optando por ocultar sua identidade indígena, assumindo a condição de "caboclos", permanecendo nas vilas criadas em suas aldeias de origem. As miscigenações forçadas que vinham ocorrendo desde o "Descobrimento" e a consolidação desta mistura em uma única aldeia fizeram surgir esta identidade, baseada em relações de parentesco concretas e na percepção da pertença a um único grupo. A aldeia de Barra Velha e as relações com ela e seus membros são usadas como referência de etnicidade até os dias de hoje, sendo esta considerada pelos Pataxó atuais como a Aldeia-Mãe de todas as outras existentes.

Carvalho (1977) atesta que praticamente não existem referências escritas da aldeia de Barra Velha, nem de qualquer outro agrupamento Pataxó na região de Porto Seguro, até 1939, quando uma expedição aérea comandada pelo Almirante Gago Coutinho realizou vôo até Porto Seguro, tendo pousado em Barra Velha. Este descreveu a aldeia como um local miserável, formado por: "pequena população descendente dos Tupiniquins", "caboclos inteiramente abandonados" e "caboclos doentes e analfabetos". A autora também atesta que tal era o desconhecimento da aldeia que uma Comissão encarregada pelo Presidente da República para determinar o ponto exato do Descobrimento do Brasil, que estava na região na mesma época da visita de Gago Coutinho, desconsiderou a sua existência, propondo a Criação do Parque Nacional de Monte Pascoal nas terras que os Pataxó que ocupavam. Além das terras ocupadas por famílias isoladas de remanescentes das antigas aldeias, especialmente os de Vale Verde que, conforme veremos mais adiante ainda permaneceram organizados, apesar da "extinção" oficial da aldeia; o território ocupado pelos índios neste período, não se restringia ao espaço da aldeia de Barra Velha, mas a toda a região compreendida entre os vales dos Rios Caraíva e Corumbau e seus pequenos afluentes.

Voltando à proposta de Criação do Parque Nacional de Monte Pascoal, feita pela Comissão acima citada, entre outras diversas propostas que visavam preservar a memória do "Descobrimento", o referido Parque veio a ser legalmente criado somente através do Decreto Nº 12.729 de 19 de abril de 1943. Foi tal notícia que levou os Pataxó de Barra Velha a pela primeira vez reivindicarem oficialmente a sua condição de índios, empreendendo uma viagem ao Rio de Janeiro em busca da ajuda do SPI. Um dos líderes da aldeia, o "capitão" Honório foi sozinho até o Rio de Janeiro, em uma viagem longa, sem qualquer recurso. Lá não obteve nada além da promessa de que mandariam alguém a Barra Velha para estudar uma solução para o problema. Logo após o retorno, apareceram dois indivíduos na aldeia, cuja identidade até hoje permanece desconhecida, se apresentando como fucionários da do governo e que estavam ali para demarcar as terras dos Pataxó. Conquistando a confiança dos índios os dois homens promoveram um saque (seguido de tiroteio) a um comerciante do povoado de Corumbau. Tal ação foi violentamente reprimida por policiais de Porto Seguro e Prado, gerando prisões e mortes dos dois homens e dois índios. Esse conflito marcou a vida dos Pataxó sendo conhecido como "Fogo de 51", marcando a primeira diáspora de Barra Velha, e também rompe o isolamento de seus membros e os obriga a enfrentar uma nova situação política, na qual a "invisibilidade" e a "mistura" passam a ser elementos essenciais de sobrevivência, diante das contestações à sua identidade e à negação aos seus direitos que naquele momento enfrentam.

Apesar de ter originado todo esse conflito, o Parque Nacional de Monte Pascoal somente veio a ser definitivamente implantado no ano de 1961, inaugurando uma nova fase de conflitos com os índios que resistiram em Barra Velha e nas matas do entorno do Monte Pascoal, os quais já estavam voltando, na medida do possível, à normalidade de suas vidas. Deu-se aí uma nova diáspora, de conseqüências tão graves quanto a de 1951. Porém, foi também nesse período que se consolidaram as ocupações definitivas em outros espaços de uso tradicional, como alternativa para a desocupação de Barra Velha; assim como também consolidou-se a formação de um grupo permanente de "desaldeados", constituindo núcleos familiares e de vizinhança dentro das cidades e distritos da região, especialmente em Porto Seguro e Arraial D'Ajuda, como relatam os moradores de Aldeia Velha.

Modo de vida e morfologia social.

Os Pataxó, consideradas as características de outros povos membros do Tronco Macro-Jê, poderiam ser apontados como tendo entre as suas características principais a convivência de um sistema tecnológico "simples" com um sistema social extremamente complexo.

Apesar do longo período de contato, algumas das características atribuídas aos Macro-Jê, podem ser verificadas ainda entre os Pataxó. Entre essas se destacam as relações políticas expressas, principalmente, através de um intenso facciosismo baseado em compromissos de solidariedade estipulados pelas relações de parentesco, pelas rivalidades entre grupos internos e, simultaneamente, pelas articulações contextuais e distintas daqueles grupos com diversos agentes não-indígenas presentes no contexto das suas relações de contato.

Os Pataxó tradicionalmente exploram o meio ambiente em que vivem através da caça, pesca e coleta, atividades que se associam a uma agricultura rudimentar. Em função da organização da produção e da apropriação do território através de grupos familiares, a necessidade de um amplo território sempre foi fundamental para a reprodução do grupo. Neste território, que historicamente era geralmente partilhado/disputado com grupos inimigos, a variedade de ambientes era condição fundamental para a sobrevivência.

Sabe-se que, devido, talvez, ao seu maior contingente populacional e a posse de recursos estratégicos, os grupos de língua Tupi conseguiram sobrepô-los na ocupação das terras litorâneas, as quais os Pataxó também nunca deixaram de utilizar. Contudo, principalmente após o aparecimento dos portugueses e o estabelecimento de alianças e/ou a submissão forçada de grupos Tupi; os Pataxó optaram por uma especialização na sobrevivência nas regiões de mata, as quais ofereciam melhor condição de refugiar-se do contato e também de seus inimigos. Assim, estabeleceram uma tradição de exploração do território baseada essencialmente na caça e coleta.

Mesmo após a intensificação da ocupação de seu território e ao confinamento de grande parcela de sua população nos aldeamentos, esta estratégia garantiu que parte do grupo mantivesse sua independência.

Tal estratégia também permitiu que eles sobrevivessem, enquanto grupo, à falência do sistema de aldeamentos. Assim é que, ainda na década de 20 do século passado eram encontrados grupos de Pataxó sem contato. Embora a mata seja o espaço de ocupação ideal para os Pataxó, estes mantiveram uma relação fundamental com as terras litorâneas, as quais forneciam a complementação dos recursos necessários à sua sobrevivência, especialmente através da coleta de mariscos, caranguejos e outros produtos deste ambiente, além da pesca. Porém, suas atividades sempre foram limitadas quase que exclusivamente à exploração dos mangues e dos recifes de coral.

2-HABITAÇÃO PERMANENTE

A demanda dos Pataxó de Aldeia Velha obedece integralmente aos quatro critérios elencados no artigo 231 da Constituição Federal de 1988 que assim define uma terra de ocupação tradicional:

a) sejam por eles habitadas em caráter permanente; b) utilizadas para suas atividades produtivas; c)imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar; d) necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

II.1. A estratégia da "invisibilidade" e da "mistura" como forma de permanência no território e a identidade dos Pataxó de Aldeia Velha com os outros Pataxó do Extremo Sul da Bahia.

Os Pataxó do Extremo Sul da Bahia, porém, alcançados primeiramente pelas frentes de expansão colonialista, foram em parte forçados à transferência para aldeamentos, embora muitos ainda tenham resistido livremente nas matas do Monte Pascoal até meados do século XIX. Nos aldeamentos do Extremo Sul, obrigados à convivência com vários outros grupos e submetidos à política deliberada de casamentos interétnicos, processou-se a "mistura", alternativa que permitiu a manutenção dos laços de solidariedade interna e a ampliação destes laços pela incorporação de membros de outros grupos, através das relações de parentesco. Ao mesmo tempo, a vida nos aldeamentos garantiu a proteção legal mínima para a sua sobrevivência física e a utilização de um espaço limitado de seu território, baseada no Decreto Régio que garantia aos índios a posse de "uma légua em quadra" em torno do aldeamento. A dissolução dos aldeamentos foi a estratégia usada para esbulhar aquelas poucas terras que ainda mantinham. Não foi outra a finalidade da "extinção oficial" das antigas aldeias de Vila Verde, Trancoso e uma série de outras na região e a sua unificação na aldeia de Barra Velha. O fato da aldeia de Barra Velha fazer parte do território tradicional Pataxó e situar-se nas proximidades das matas de Monte Pascoal e dos afluentes dos Rios Caraíva e Corumbau, onde ainda viviam os seus membros mais independentes; permitiu a sobrevivência do grupo durante longos anos, de forma tão autônoma e "invisível" que pouco foram citados na documentação histórica durante um período de quase 100 anos, entre 1860 e 1951. Porém, apesar da determinação da "extinção" do aldeamento, a região da Aldeia Velha não foi inteiramente desocupada pelos índios, como pode querer nos sugerir o discurso da época. Embora seja escassa a documentação sobre este período existem muitas pistas sobre a permanência desta ocupação. A existência permanente de índios naquela região é assegurada por indícios arqueológicos, confirmada por documentos históricos e guardada na memória oral dos índios que continuaram a viver no local.

Da mesma forma, a Aldeia Velha permaneceu viva no imaginário de todos os Pataxó e especialmente daqueles que, em função de relações de parentesco, de solidariedade grupal e do sentimento de compartilharem uma origem e uma história comum, construíram o movimento que culminou na "retomada" das terras da antiga Aldeia de Santo Amaro, constituindo a T.I. Aldeia Velha. Barra Velha é para todas as outras aldeias do Extremo Sul uma referência identitária, estabelecida em torno do parentesco real ou simbolicamente construído com seus membros. É este processo que vai permitir que "caboclos do Vale Verde", "desaldeados de Barra Velha", oriundos das Matas do Monte Pascoal e dos Rios Corumbau e Caraíva e outros vários "caboclos" e "desaldeados" de diversas origens pudessem se organizar, se constituir como um grupo, com um único sentimento de identidade e, com base nesse sentimento, encontrassem na Aldeia Velha (naquele território específico e em nenhum outro) o seu território, sobre o qual constituem uma ocupação do tipo tradicional.

Porém, para buscarmos as pistas, ocultas nos discursos oficiais e vivas na memória da ocupação permanente deste território, tentaremos recuperar o pouco que se sabe da antiga Aldeia de Santo Amaro e demonstraremos a "continuidade simbólica" existente entre esta e a Aldeia da Patatiba, também chamada ao longo dos anos de Patativa, Vila Verde ou Vale Verde.

II.2. A Aldeia de Santo Amaro, a Aldeia da Patatiba e a constituição dos "caboclos de Vale Verde"

Vimos na Primeira Parte que o nome da T.I. Aldeia Velha e o da Fazenda Santo Amaro, são referências ao antigo aldeamento de Santo Amaro que naquele local existiu no Séc. XVI, conforme citado por Denis (1980 [1838]) e Gandavo (1980 [1570/1576]) (in Mascarenhas, 1998:67). Segundo Denis, e conforme a tradição oral, este aldeamento teria sido destruído pelos índios "abatiras" no ano de 1564. Esta tradição oral ainda hoje é expressa em narrativas míticas colhidas por Mascarenhas (1998:67), mantendo a mesma estrutura de um mito regional, registrado por Casal (1976) e de uma outra versão registrada na obra "Sob os céus de Porto Seguro", da Diretoria de Cultura e Divulgação do Estado da Bahia, publicada no ano de 1940.

Estas narrativas dão conta da existência da antiga Aldeia Santo Amaro, dos motivos que levaram à sua destruição e do destino dos personagens envolvidos na narrativa, os quais deram origem a outros aldeamentos da região, especialmente a Aldeia da Patatiba e o Arraial D'Ajuda, ambos geograficamente vizinhos a Santo Amaro.

Retomemos a estrutura destas narrativas míticas para, comparando suas diferenças e semelhanças, concluir que a Aldeia de Santo Amaro pode ser tomada com a mesma acepção de "Aldeia-Mãe" dada a Barra Velha, quiçá poderia dizer-se "Aldeia-Avó", tendo em vista o reforço retórico dos Pataxó em denominá-la como "a Aldeia Velha", a verdadeiramente mais antiga. A versão do mito colhida por Mascarenhas (1999:67) em Vale Verde, no ano de 1999, refere-se à guerra que provocou a extinção da aldeia entre os índios da Aldeia de Santo Amaro e os portugueses, e ao amor de Patatiba, a "índia mais bela da tribo", por um português. Tendo esta sido raptada pelo amante, o casal subiu o rio Buranhém e se fixou no local que deu origem à Aldeia da Patatiba, atual Vale Verde. A outra versão a que tivemos acesso é bem mais complexa e parece promover a junção de outras narrativas mitológicas diversas. Nessa versão, a índia é chamada de Ynaiá e se diz que ela pertencia a uma aldeia dos índios Aimorés, nome dado geralmente aos grupos Botocudos ou aos índios que não pertenciam ao tronco lingüístico Tupi. A narrativa diz que tal aldeia era situada no Rio Caraíva e faz referência ao contato destes índios com os portugueses na foz do Rio Corumbau, onde posteriormente foi fundada a Aldeia de Barra Velha.

Porém, voltemos aos dados "oficiais". Os documentos históricos comprovam ter existido, até o ano de 1564, a Aldeia Santo Amaro naquele exato local onde, corroborando esse fato, foi implantada a fazenda Santo Amaro e onde hoje está situada a Aldeia Velha. Mascarenhas (1998:67) anota que se acredita que a Aldeia da Patatiba, que ficou oficialmente conhecida como Aldeia do Espírito Santo dos Índios e depois Vila Verde, tenha sido erigida em 1567.

Este autor acredita que estes fatos corroboram a lenda, tanto pela proximidade temporal dos eventos quanto pela localização espacial, citando a narrativa mitológica referências geográficas exatas e comprováveis.

Esta aldeia vai ser uma das poucas a perdurar, apesar de toda a conjuntura colonial desfavorável. Sampaio (2000:124) aponta que as grandes aldeias Tupiniquim existentes no início do contato com os portugueses foram presas fáceis da colonização, sendo extintas em curto período. Também as grandes concentrações indígenas formadas pelos aldeamentos jesuíticos foram dizimadas pelas epidemias européias.

Mascarenhas (1999:68), citando Leite (1945), afirma ter sido a aldeia da Patatiba elevada à condição de Vila, com o nome de Vila Verde, no ano de 1762, com a expulsão dos jesuítas. Porém, ao criar a Vila não havia no local ninguém mais além de 400 índios. Ainda se referem a Vila Verde, como aldeia indígena, Casal (1976[1817] e Dória (1988), que afirma ter estado ela subordinada à Comarca de Porto Seguro até 1854 e ao Município de Porto Seguro, depois de 1861. Naquele ano esta aldeia, e todas as outras da região, teriam sido "oficialmente" extintas e determinada a transferência dos índios para o local da Aldeia Barra Velha. Na verdade, a "extinção" das aldeias atendeu a um único objetivo, deslegitimar o direito dos índios a terra.

Afora isso, a permanência dos índios nas aldeias poderia ser admitida e até era necessária, devido a escassez de mão-de-obra, desde que eles também fossem deslegitimados como índios. Para isso, a criação e a manipulação da categoria de "caboclos" serviu muito bem, porque estava sempre aliada a uma condição de "mestiços", "mansos", "civilizados".

Sob o aspecto fundiário, declaravam-se devolutas aquelas terras que fossem conquistados aos índios por meio das "guerras justas" e se estabeleceu, através da Lei de Terras de 1850, a proibição aos índios de ocuparem as terras que fossem consideradas devolutas.

A teoria que embasava esta legislação explicava a relação dos índios com as suas terras a partir de conceitos etnocêntricos, tais como: o seu "não apego à propriedade", seu "caráter nômade", "errante" e, principalmente, sua essência "pouco afeita ao trabalho", seu "apego ao ócio e à preguiça". A nova política de aldeamento passou a favorecer o estabelecimento de "moradores" entre os índios, estimulando a assimilação física e social dos mesmos. A mestiçagem tirava dos índios o direito ao tratamento diferenciado, visto que as teorias raciais vigentes ligavam a condição identitária a características biológicas. Ao mesmo tempo, a perda da cultura original, especialmente da língua, era justificativa para a perda do direito do acesso às terras. Este acesso havia sido regulamentado pelo Alvará Régio de 1700, o qual doava aos "índios aldeados" uma porção de terras com "uma légua em quadra" em torno dos aldeamentos.

Mascarenhas (1999:72-76) registra a existência de alguns documentos históricos referentes a Vale Verde. A maioria deles refere-se a "cessão" de índios da aldeia para trabalho em casas e propriedades particulares de não-índios, na maioria das vezes justificando-a como um benefício para o índio, para sua educação ("aprender a ler e escrever" ou "aprender um ofício") ou para prover o seu sustento.

Os documentos sobre Vale Verde também comprovam a estratégia da deslegitimização dos índios como merecedores de direitos, ao mesmo tempo, alegando-se ora a sua condição "selvagem", ora negando-se a sua existência ou acentuando-se a sua miscigenação e perda da cultura. Em 1849 um documento afirma que: "índios só existem no sertão do rio: São bravos, e os que vivem na Villa são produção do princípio da criação da Villa que pela maior parte são mamelucos". Em 10.01.1851 um relatório do diretor Geral de índios informa que apenas 20 indígenas "bravos" aparecem na Vila pacificamente e retornam às matas. Porém, contraditoriamente, em 1854 documentos afirmam que a vila tem apenas "selvagens habitantes".

Em 1855, a Câmara informa que não existem terras próprias em Vila Verde, sendo estas cultivadas exclusivamente por índios desde a sua criação. Em 1856 o Diretor Geral dos Índios relata existirem apenas 60 índios civilizados em Vila Verde (idem:76).

Após este período, contraditoriamente, os relatos de decadência da aldeia, são substituídos por informações que dão conta da existência de um numeroso contingente de índios na mesma, levando a crer que as informações anteriores possam ter sido deliberadamente confusas e imprecisas para alcançar o objetivo da deslegitimização dos índios e do seu direito a terra. Mascarenhas (idem:76) cita a existência de um documento de outubro de 1883, onde o Juiz Municipal de Porto Seguro informa ao presidente da província que Vila Verde tem uma população de 1000 "almas". Em 1886, o Juiz de Direito da Comarca de Porto Seguro informa não ter havido alistamento militar em Vila Verde, cumprindo-se a legislação que determinava a isenção dos índios ao serviço militar. Em 1887 o Promotor Público informa não haver em Vila Verde estrangeiro algum além dos seus moradores índios e o Juiz de direito interino da Comarca estima haver ali uma paróquia com 1000 a 1500 almas.

Na concepção dos índios de Barra Velha, o termo "caboclo" é considerado como uma representação do índio. Citando Reesink (1993), Mascarenhas demonstra que o "caboclo" foi uma criação da sociedade dominante a partir do índio. Para incluir-se na categoria de "caboclo", porém, são referidos alguns "traços" considerados típicos, os quais compõem uma "tradição". Em Vale Verde, são destacados entre estes traços: o uso do beiju e da tapioca; do mel de cacau para fazer licor; o uso do "cauim"; a confecção de artesanato, especialmente as esteiras de "tabu" (taboa) e o conhecimento de ervas medicinais.

Estão incorporadas a esta "tradição" algumas festas católicas, profundamente influenciadas por costumes "caboclos", algumas delas advindas de um certo "sincretismo religioso". Em Vale Verde destacam-se a Festa do Mastro de São Sebastião, a Festa de São Brás, de Nossa Senhora do Rosário, os "carurus de taioba" em homenagem a São Cosme e Damião e, principalmente, a Festa do Império, ou do Divino Espírito Santo, padroeiro da antiga aldeia, que primeiramente recebeu o nome de Aldeia do Espírito Santo dos Índios. Algumas destas festas, especialmente as do Mastro de São Sebastião e a de São Brás, são comuns entre quase todos os "caboclos" da região e nas aldeias Pataxó. Porém, tem importância central na atribuição da "identidade de caboclo" as relações de parentesco, a descendência.

Um "caboclo" de Trancoso entrevistado por Mascarenhas (1999: 54) tinha parentes em Caraíva e Barra Velha, dos quais um era apontado como um chefe Pataxó ("é dono dos índios de lá") e assim definia a centralidade das relações de parentesco.

Inicialmente, a relação entre os caboclos de Vale Verde e a T.I. Aldeia Velha é estabelecida pela própria origem histórica de Vale Verde, resultante da destruição da Aldeia Santo Amaro. Porém, foram os fatores econômicos e ambientais que mantiveram uma relação permanente destes com essa terra. Mascarenhas descreve a importância da região de mangues situada na T.I. Aldeia Velha para os habitantes de Vale Verde. Os vestígios desta ocupação permanente são evidenciados nos achados arqueológicos ali existentes. Entre estes destacam-se os fornos de barro destinados a fabricação de farinha encontrados em vários pontos da terra indígena, típicos do período pós-colonial, cujo estado de conservação permite especular que datem desde o século XIX até meados do século XX.

Durante muito tempo, apenas algumas poucas famílias residiam no local, sendo considerada a família de D. Dió como a mais antiga ali permanentemente estabelecida. Porém, outras famílias utilizavam a área de forma temporária, em atividades agrícolas, caça, pesca e coleta. Há mais de 30 anos atrás, provavelmente como reflexo das mudanças na estrutura fundiária da região, a área passou a servir de moradia permanente para um maior grupo de famílias. Estas, seguindo os padrões de dispersão familiar típico dos grupos indígenas da região, chegaram a constituir uma verdadeira aldeia. Tal ocupação somente veio a ser frustrada por volta de 1983, quando os proprietários da COSVAR Agropecuária tomaram posse da Fazenda Santo Amaro, usando de todos os meios possíveis para dali tirar os seus antigos moradores. Entre os meios utilizados pela Empresa, segundo os índios, o mais freqüente foi a "pressão", baseada na ameaça.

Primeiramente se ordenava que os ocupantes saíssem e, no caso de alguma resistência, se oferecia uma "indenização simbólica". Caso houvesse a recusa outros meios eram usados, especialmente a inviabilização da coexistência e do acesso aos meios de subsistência.

Eram impostas restrições ao tráfego e ao uso da terra e, propositalmente, era solto o gado da fazenda nas áreas de plantio; além de envenenarem os seus animais, segundo suspeitam os índios. Esse conjunto de ações tomadas pelos "proprietários" da fazenda caracterizam o esbulho forçado das terras. A resistência de D. Dió e sua família, apesar de todas as pressões, manteve viva a relação dos índios com a terra, mesmo depois de se espalharem pelas localidades vizinhas. Este núcleo de famílias expulsas da terra servirá de base para a arregimentação de outros membros para aquele que se constituirá no grupo dos "Pataxó sem terra", cuja formação serviu para reunirem forças para a retomada da área.

3-ATIVIDADES PRODUTIVAS

A produção agrícola na T.I. Aldeia Velha é feita em roças e quintais. Nos quintais, ao redor e nos fundos das residências, são produzidos alimentos para a subsistência e, em alguns casos, hortaliças para venda. As roças são localizadas afastadas da aldeia, geralmente em capoeiras ou clareiras abertas no interior da Floresta Aluvial, servindo tanto para subsistência quanto para a venda, especialmente de mandioca. A mandioca é o único produto que passa por beneficiamento, sendo vendida na forma de farinha. São cultivadas espécies de ciclo curto como a mandioca e o feijão e espécies perenes, nativas ou introduzidas, como a banana e a manga.

O regime de trabalho é familiar, sendo também costumeiro o emprego de mão-de-obra de parentes e compadres, principalmente na colheita e processamento da mandioca, sendo com eles dividida a produção. As roças estão distribuídas em 04 núcleos, situados na porção ocidental da área, onde incide a área de Floresta Aluvial.

Segundo Nadinho a abertura de roças é feita somente após consulta às lideranças, para se definir as áreas disponíveis.

As práticas agrícolas seguem um padrão básico: corte da vegetação arbustiva, derrubada da vegetação arbórea (em parte ou completamente), espera para a secagem, queima e plantio. Os tratos culturais envolvem a capina e a queima do mato em uma extremidade da roça. Alguns agricultores deixam o mato na roça, conscientes de sua utilidade como "adubo", mas, a maioria deles entende que roça bem cuidada é uma roça limpa, sem mato. Esta prática acaba deixando o solo exposto e tornando o ambiente mais suscetível às variações climáticas.

A agricultura praticada em Aldeia Velha segue algumas das premissas principais da agricultura tradicional: elevado nível de diversidade de espécies cultivadas nas roças; cultivo de diferentes espécies de forma consorciada e a prática do descanso do solo ou "pousio". Entretanto, esta técnica só é eficiente quando há disponibilidade de áreas para abertura de novas roças. Em Aldeia Velha isso implica em desmatar remanescentes florestais. Pode-se notar uma certa tensão interna quanto à permissão ou não das lideranças para abertura de novas roças. Também se observa a troca de acusações entre facções sobre o uso inadequado das áreas de roça. O Campo Nativo e pequenas manchas de braquiária plantadas pela fazenda são usados para a pecuária. O rebanho bovino (16 cabeças) e o eqüino é pequeno, não representando qualquer impacto sobre a natureza. Ambos recebem tratamento fitossanitário por parte de técnico da FUNAI, em parceria com a CEPLAC. Embora haja intenção dos índios de ampliar o rebanho, não possuem recursos próprios para tanto.

A maior parte do rebanho é pertencente à comunidade, havendo alguns poucos animais de propriedade individual, especialmente eqüinos. Uma família indígena possui cavalos para uso em carroça, a qual é usada para frete em Arraial D'Ajuda, sendo esta a principal fonte de subsistência dessa família. A criação de pequenos animais limita-se quase que exclusivamente às galinhas criadas nos quintais. A coleta na T.I. Aldeia Velha tem como principais objetivos o uso medicinal e a confecção de artesanato.

A coleta para produção de artesanato é comercialmente muito importante, constituindo-se numa das principais fontes de renda da comunidade. São produzidos principalmente colares e outros adornos.

São coletados sementes, fibras, cipós e madeira. O artesanato é vendido nas praias de Arraial D'Ajuda ou no Centro Comercial da Aldeia Coroa Vermelha, através de intermediários indígenas. O Cacique Ipê mantém uma loja naquele Centro, trabalhando nela a sua mulher e as filhas, que moram em coroa Vermelha. Na sua loja é vendido artesanato produzido por ele e por outros moradores de Aldeia Velha, além de outros tipos de souvenirs.

Tal qual os Aymoré, os Pataxó eram considerados arredios e seminômades. Viveram predominantemente da caça e da coleta durante séculos, atividade que está inserida até os dias de hoje na vida dessa etnia. As análises mais modernas consideram que esses grupos, com certeza, realizavam atividades agrícolas de ciclo curto (Sotto-Maior, 2007; 144).

Contudo, tendo em vista a escassez de caça e ao fato de estar a população indígena de Aldeia Velha inserida parcialmente na vida urbana, a importância da caça como fonte de proteína, atualmente, é pequena e comercialmente é nula. Porém, sua importância simbólica é muito grande, exercendo grande atração por remeter a hábitos culturais do grupo. O consumo de caça geralmente está associado a "um desejo de comer" certo animal.

Para eles a suninha Manaitê (carne de vaca/boi) é o alimento preferido, substituindo então a caça pela criação de gado. Observamos que algumas famílias possuem redes de pesca e que o consumo de peixes (mukussuy) é muito comum na aldeia. Porém, poucas famílias dedicam-se à atividade pesqueira. Os equipamentos mais utilizados pelos pescadores são a groseira (também conhecida como "espinhel"), a tarrafa e a rede. Os peixes mais capturados são: carapeba, cangaíra (semelhante à tainha), bagre e "cabeça-de-coco". Janeiro é a melhor época para a pesca, pois o "tempo está mais aberto". São utilizadas canoas feitas com tábuas de madeira, sobre cuja construção os índios demonstraram ter conhecimento ao apontar na Floresta duas espécies de madeira apropriadas para tanto (Embiruçu e Gundiba).

A pesca em alto mar não é comumente praticada, sendo utilizada mais a pesca de canoa nas proximidades dos recifes. Apenas um índio domina a técnica da tecelagem de redes para pesca de alto mar, tendo exercido o ofício de enquanto esteve desaldeado. Hoje ele continua a pescar para subsistência e para venda, sendo auxiliado apenas por sua esposa, a índia Araraúna. Os peixes mais encontrados e saboreados pelos Pataxó são o Vermelho, Guaiuba, Ariacó, Pescada, Sarda, Corvina, Badejo e outros. Nos manguezais fazem a coleta de moluscos e crustáceos, principalmente para subsistência. As conchas conhecidas como "lambretas" são muito apreciadas para o consumo e procuradas por compradores de Arraial D'Ajuda. Este molusco vive agarrado nas raízes do mangue e é retirado na maré baixa, enfiando um facão na lama até bater na concha, aí então o pescador introduz o braço e a retira.

Na aldeia, as conchas são preparadas para consumo com farofa e caldo. Para encher um balde pequeno, no qual cabem aproximadamente 20 dúzias de conchas são necessárias pelo menos duas horas e meia de trabalho para dois homens. Quando coletado para venda, o produto é comercializado nos restaurantes da região, os quais pagam R$1,00 por dúzia. Os crustáceos mais consumidos são o caranguejo e o guaimum. Coleta-se manualmente o caranguejo e utiliza-se armadilhas chamadas de "ratoeiras" para capturar o guaiamum.

Estes também são vendidos na cidade. Para a captura de caranguejos também são usadas armadilhas do tipo "arapuca". As arapucas por nós vistas estavam instaladas em áreas de apicum e na transição entre um pomar antigo e um brejo.

4- MEIO AMBIENTE

A Terra Indígena Aldeia Velha encontra-se localizada na bacia do Rio Buranhém, próxima às bacias dos Rios Jequitinhonha, ao norte e Jucuruçu, ao sul. Apresenta relevo característico de planícies litorâneas e tabuleiros costeiros. O clima é quente e úmido.

Embora seja classificado como não possuindo estação seca, pudemos observar a ocorrência desta no decorrer do trabalho. Além dos Rios Buranhém e Santo Amaro, seus limites naturais, a área apresenta pequenos cursos d'água, riachos sem denominação. Muitos deles são drenagens que só têm água na época das chuvas ou que se espalham na planície formando brejos. Os solos são arenosos e de baixa fertilidade natural.

A T.I. Aldeia Velha apresenta uma incomparável riqueza de paisagens naturais, apesar de sua pequena extensão e da degradação do ambiente existente no seu entorno, o que a torna única e de grande importância ambiental. As paisagens ali identificadas foram: Floresta Aluvial, Capoeira, Manguezal, Interface Manguezal-Floresta, Campo Nativo, Capão de Mata e Brejos ou ambientes alagados. Também foram verificados pomares antigos, constituindo-se num tipo diferente de "capão". Também são paisagens importantes os Rios Buranhém e Santo Amaro.

Por seus hábitos alimentares, por suas necessidades materiais e representações simbólicas, os Pataxó conhecem as potencialidades do ambiente em que vivem, identificando e explorando os vários ecossistemas locais.

FLORESTA ALUVIAL

Pertence ao sistema da Floresta Ombrófila Densa, faz parte da Mata Atlântica, um dos ambientes mais ameaçados do Brasil e cuja preservação é legalmente determinada. A Floresta Aluvial é uma formação ribeirinha que ocorre ao longo dos cursos de água ocupando os terraços antigos das planícies quaternárias. Apresenta muitas palmeiras e cipós, estes últimos podendo ser lenhosos e herbáceos (IBGE, 1991).

O remanescente florestal da T.I. Aldeia Velha encontra-se bastante preservado e muitas árvores ultrapassam os 30 metros de altura. Ocorre basicamente em tabuleiros e suas encostas. Este remanescente de Floresta Aluvial se reveste de importância, pois é um dos poucos existentes na região, e também por formar um corredor florestal com os remanescentes florestais da Fazenda Japara e do Parque Nacional do Pau Brasil (conforme comunicação pessoal do Engº. Florestal Danilo Sette de Almeida, da empresa Veracel Celulose S.A.). Pode-se verificar que esta área florestal já foi utilizada por antigos moradores, que em seu interior construíam moradias. Observamos em alguns pontos, onde a floresta exibe árvores nativas com mais de 30 metros de altura, a existência de antigos pomares com jaqueiras, cajás e mangueiras enormes, fazendo parte do conjunto florestal. Um dos moradores mais antigos da área informou que conhece estas árvores há pelo menos 40 anos e que nessa época elas já tinham este tamanho.

Cabe destacar que mesmo as espécies que não são apontadas como de uso direto pelos índios têm a sua utilidade indicada por eles como "da natureza" (13 ocorrências), revelando um conhecimento da importância de cada espécie em um conjunto, numa perfeita concepção do que designamos como ecologia. Além desta categoria, são identificadas pelos índios espécies que fornecem frutos para os animais, especialmente aquelas que, por este motivo, atraem caça.

Entre os usos mais citados estão: a construção de casas (esteios, tábuas, palhas para cobertura, etc.) com 22 ocorrências; a fabricação de artesanato (utilitários, decorativos, armas, etc.) com 15 ocorrências; uso medicinal e frutos para alimentação. Observe-se que os índios não citaram o uso para lenha, embora tenhamos observado a coleta de lenha e a importância desta no preparo de alimentos na aldeia.

MANGUEZAL

O Manguezal é a vegetação de influência flúvio-marinha que ocorre nas margens dos Rios Buranhém e Santo Amaro. Na região ocorre o mangue vermelho, Rhizophora mangle, próximo à desembocadura dos rios e o mangue siriúba, Avicenia schaueriana, em locais mais afastados do mar. Associadas ao manguezal, nos locais que sofrem menos influência das marés, encontramos a aninga, Montrichardia sp, o algodão-do-mangue, Hibiscus pernambucensis e a samambaia-do-mangue, Acrosticum aureum. Estas espécies ocorrem na transição entre o ambiente aquático e o terrestre.

Essa área que é de sistema extremamente frágil é também um dos mais importantes aos Pataxó, já que a maior parte de suas reservas de proteína são conseguidas no mangue. A interface entre o manguezal e a floresta é uma paisagem bastante peculiar. Esta paisagem é conhecida pelos índios como "apicum" e para eles é a divisa entre o manguezal e a terra seca. Ocorre em solos arenosos e apresenta muitos gravatás. Este tipo de vegetação só foi encontrado no limite sudeste da T.I.. No transecto ali realizado foram registradas 26 espécies vegetais, sendo a altura da vegetação na floresta em torno de 10 metros.

O Campo Nativo também está presente na área. A região de planície apresenta pastagens naturais como o capim-colchão, capimrabo-de-rato, sapé e junco entre outros, em pequena escala se pode observar a existência de braquiária. As áreas de campo nativo são utilizadas para pastagem do pequeno rebanho bovino e eqüino dos índios. Esta paisagem é alagada na época das chuvas, entre junho e agosto. O lençol freático é superficial, sendo localizado a 40 cm de profundidade em um ponto estudado. Em locais mais altos, na região de pastagem natural, existem pequenas "ilhas" de floresta baixa que formam capões. Alguns destes capões foram enriquecidos por antigos moradores com palmeiras de dendê, coqueiros e frutíferas, formando pomares. Foram feitos 2 transectos nas áreas de capão, um em área nativa, não enriquecida e outro num pomar antigo. No primeiro verificou-se que a vegetação não ultrapassa os 10 metros de altura e foram encontradas 17 espécies vegetais. O segundo transecto foi feito no local onde morava Dona Dió, tendo sido este pomar formado por ela há cerca de 40 anos. Foram registradas 08 espécies, destacando-se entre as espécies os dendezeiros e coqueiros.

Entre os campos naturais e os manguezais, ou na margem do rio Buranhém, encontra-se uma vegetação composta basicamente de tiririca (Cyperus sp.), aninga (Montrichardia sp.) e algodão-do-mangue (Hibiscus pernambucensis) consorciados ou isolados. Esta vegetação ocorre em solo arenoso e pode alcançar até 2 metros de altura cobrindo extensões consideráveis da T.I.. Os índios informam que as grandes manchas de tiririca são um refúgio para o caranguejo, pois é extremamente difícil capturá-lo no meio da vegetação cerrada.

As espécies animais usadas pelos índios ocorrem em todos os tipos de paisagem, destacando-se a Floresta Aluvial (17), o campo nativo (15), o mangue (13), os rios (12) e os brejos (10). As paisagens terrestres e especialmente a mata se destacam, sendo este o ambiente tradicionalmente preferencial na cultura Pataxó. Porém, entre as espécies utilizadas como comida se destacam as do rio (10 ocorrências) e do mangue (09). Embora os Pataxó de Aldeia Velha não sejam tradicionalmente pescadores, possuem algumas tarrafas e redes e usam largamente os peixes na alimentação. Considerando a disponibilidade e a existência de recursos para captura, os moluscos e crustáceos são muito importantes na alimentação dos Pataxó. Verificamos a existência de diversos tipos de armadilhas e vestígios de captura e consumo de moluscos e crustáceos, principalmente no Apicum e no Campo Nativo.

Os moradores de Aldeia Velha, destacando-se D. Maria D'Ajuda, seu filho Guilherme e o Cacique Ipê, nossos principais informantes a esse respeito, detêm um farto conhecimento das propriedades medicinais das plantas. Guilherme é Agente de Saúde da aldeia e nos contou que durante o treinamento promovido pela Secretaria de Saúde os seus conhecimentos indígenas foram aproveitados e valorizados. O uso de plantas medicinais envolve um certo grau de especialização dos conhecimentos. Portanto, uma ampliação do número de informantes incluindo diversas famílias, poderia resultar numa listagem maior e mais completa.

A produção agrícola na T.I. Aldeia Velha é feita em roças e quintais. Nos quintais, ao redor e nos fundos das residências, são produzidos alimentos para a subsistência e, em alguns casos, hortaliças para venda. As roças são afastadas da aldeia, geralmente em capoeiras ou clareiras abertas no interior da Floresta Aluvial, servindo tanto para subsistência quanto para a venda, especialmente de mandioca.

A mandioca é o único produto que passa por beneficiamento, sendo vendida na forma de farinha. O regime de trabalho é familiar, sendo também costumeiro o emprego de mão-de-obra de parentes e compadres principalmente na colheita e processamento da mandioca, sendo com eles dividida a produção. As roças estão distribuídas em 04 núcleos, situados na porção ocidental da área, na Floresta Aluvial.

Segundo o Vice-Cacique Nadinho a abertura de roças é feita após consulta às lideranças, para se definir as áreas disponíveis para esta atividade. As práticas agrícolas seguem um padrão básico: corte da vegetação arbustiva, derrubada da vegetação arbórea (em parte ou completamente), espera para a secagem da vegetação, queima e plantio.

Os tratos culturais envolvem a capina e, geralmente, a queima do mato em uma extremidade da roça. Embora alguns agricultores deixem o mato na roça, conscientes de sua utilidade como "adubo", para a maioria deles a roça bem cuidada é uma roça limpa, sem mato. Esta prática acaba deixando o solo exposto e tornando o ambiente mais suscetível às variações climáticas.

A agricultura praticada em Aldeia Velha segue algumas das premissas principais da agricultura tradicional (Noda & Noda, 2.000): elevado nível de diversidade de espécies cultivadas nas roças; policultivo, isto é, cultivo de diferentes espécies de forma consorciada, e em alguns casos tem sido observada a prática do descanso do solo com o cultivo de mandioca, remetendo à técnica do "pousio". Entretanto, esta técnica só é eficiente quando há disponibilidade de abertura de novas áreas para roças e, no caso de Aldeia Velha, isto implica em desmatamento dos remanescentes florestais. Já se pode notar uma certa tensão nas relações internas no que diz respeito à permissão ou não para abertura de roças pelas lideranças, além da troca de acusações entre facções internas sobre o uso inadequado das áreas de roça.

Tendo em vista a escassez de caça e ao fato de estar a população indígena inserida na vida urbana, a importância da caça é hoje menor como fonte de proteína, embora ainda exerça grande atração, remetendo a hábitos culturais do grupo. O consumo de caça geralmente está associado a "um desejo de comer" certo animal. Os locais preferenciais para as caçadas são a Floresta Aluvial e os pomares antigos no Campo nativo. Devido ao fato de ainda apresentar remanescentes vigorosos, a Floresta Aluvial é o habitat de alguns animais de pequeno e médio porte como o macaco preto e o caitetu.

Os pomares antigos, por sua vez, oferecem alimentos abundantes, atraindo muitos animais.

5- REPRODUÇÃO FÍSICA E CULTURAL

Sobre o grupo que habita hoje a T.I. Aldeia Velha, tendo em vista a sua constituição recente, não existem referências demográficas anteriores. A situação de dispersão a que estavam submetidos anteriormente não permite que se façam injunções sobre a sua situação demográfica anterior. Além do mais, sendo o grupo formado pela incorporação de "índios sem terra" de diversas origens, este poderia ser considerado, antes da retomada da terra, um grupo aberto e numericamente indefinível.

Contudo, sabe-se que o núcleo que formou o grupo foi constituído por algumas famílias dos chamados "caboclos de Vale Verde" e de outras famílias que mantinham relações de parentesco e de vizinhança na região do Rio Caraíva. O grupo dos caboclos de Vale Verde, pelas informações que se tem (Mascarenhas, 1998) é um grupo bastante numeroso, porém dividido em torno da decisão de assumir ou não a sua condição indígena. Portanto, a sua influência numérica sobre a população da T.I. Aldeia Velha é limitada à extensão do parentesco direto com aquelas famílias que já mantinham residência na terra indígena. A parentela da matriarca deste grupo, D. Dió, já constitui parcela significativa da população de Aldeia Velha. Não é informada a existência de grande número de parentes destes fora da aldeia, a não ser do lado paterno, em função dos vários casamentos do Sr. Boaventura, ex-marido de D. Dió. O grupo de famílias oriundas do Rio Caraíva, porém, ainda declara ter muitos parentes vivendo em Arraial D'Ajuda e em outros lugares da região, além de muitos outros em várias aldeias Pataxó. È através das relações de parentesco com este grupo e de relações políticas com setores destas famílias que se tem agregado a maior parte dos novos integrantes da aldeia.

Em termos numéricos as únicas informações que dispomos sobre o grupo antes da retomada são aproximadas. Os depoimentos indígenas citam os nomes de mais de 20 chefes de família que moraram na Fazenda Santo Amaro, porém, estima-se que no ano de 1983, quando começaram a ser expulsos pelos fazendeiros, haviam 13 famílias morando ali. Os depoimentos trazem a estimativa de que as primeiras reuniões do grupo envolviam cerca de 30 pessoas. Na primeira retomada, em 1993, estima-se que tenham participado 30 famílias ou cerca de 150 pessoas. Já na segunda retomada, em 1999, a participação ativa foi menor, envolvendo inicialmente cerca de 100 pessoas. Com a estabilidade da ocupação outros parentes vieram juntar-se ao grupo.

A população está distribuída proporcionalmente entre todas as faixas etárias, sendo pouco maior a faixa etária de 0 a 5 (18%) anos de idade e menor a faixa etária com mais de 50 anos (8%). Isto, porém, revela uma predominância da população adulta (53% da população é maior de 16 anos), o que não é característico das populações indígenas. O fato não pode ser explicado senão pelas condições de ocupação da terra indígena, levando-se em conta a precariedade da situação de "retomada", não tendo ainda sido regularizada a posse permanente da terra.

As possibilidades de aumento da população com a regularização definitiva da terra são muito grandes, considerando as inúmeras referências sobre parentes que ainda vivem nas cidades e aldeias próximas (o que podemos estimar em pelo menos 100 famílias), embora se possa supor que muitas destas famílias tenham situação estável e não pretendam viver na aldeia. Mesmo assim, pudemos verificar que várias famílias que moram nas imediações, principalmente em Arraial D'Ajuda, costumam usar a área para atividades de pesca, coleta e plantio. Além disso, a T.I. Aldeia Velha está situada em uma localização privilegiada em relação ao acesso aos turistas e possui muitos recursos naturais que certamente serão atrativos para índios de outras aldeias.

Nos estudos complementares realizados em 2007 (Portaria nº 338/PRES) foi aplicado um questionário sócio-econômico (anexo) e levantadas 141 famílias vivendo em Aldeia Velha, reforçando a previsão de aumento populacional apresentada em 2002. A comunidade de Aldeia Velha adota o sistema de organização comum nos dias de hoje a todas as aldeias Pataxó. A aldeia é liderada por um "Cacique", geralmente eleito em assembléia.

Em Aldeia Velha, devido à própria característica da constituição do grupo, o Cacique Ipê mantém um forte esquema de alianças e compromissos de parentesco que lhe dão sustentação política.

Neste sentido, surte muito efeito a aliança com a família de D. Dió, cujo filho é o Vice-Cacique, devido a sua grande expressão numérica e por ser uma família de referência para a aldeia.

A comunidade possui um posto de saúde, mantido pela FUNASA, com um agente indígena de saúde contratado através da Prefeitura de Porto Seguro. No Posto de Saúde recebem a visita semanal da equipe de saúde, também contratada através da Prefeitura.

A aldeia possui sistema de abastecimento de água que atende a maioria das casas, faltando apenas a ligação de casas novas à rede.

Durante os trabalhos de campo do GT de 2002 a FUNASA estava construindo banheiros com fossas sépticas em cada uma das casas da aldeia. Porém, tendo em vista o crescente aumento do número de casas na aldeia, havendo várias em construção e outras planejadas e como a FUNASA necessita planejar com antecedência a construção, é possível que algumas fiquem sem esse benefício, até uma próxima etapa de obras.

A educação escolar indígena na Aldeia Velha é realizada através de 03 professores indígenas, os quais vem sendo preparados pelo Curso de Formação de Professores promovido pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia. Os professores se esforçam para fornecer uma educação diferenciada para a comunidade, porém, a falta de materiais didáticos específicos e a falta de orientação técnica impedem que a escola alcance um maior nível de diferenciação. Em nossa visita à escola pudemos observar a dificuldade dos professores com o material didático disponível, o qual se referia a "fadas" e a animais selvagens africanos. O trabalho dos professores com os cantos de Toré e com artesanato indígena são iniciativas muito positivas dos mesmos.

Se a habitação permanente da T.I. Aldeia Velha é caracterizada pela existência de uma ocupação indígena efetiva e constante, realizada especialmente por núcleos familiares dos "caboclos de Vale Verde"; esta também se caracteriza pela apropriação simbólica deste território como referência étnica, cultural e histórica para o Povo Pataxó.

Tal referência é concretizada nos sítios arqueológicos pré e pós-coloniais ali encontrados, elementos fundamentais para a demarcação da sua identidade. Esses sítios estão expostos a sérios riscos caso não sejam preservados, como parte da terra indígena. Tal necessidade pode ser constatada ao verificar-se a destruição total de um deles, sobre o qual se passou o trator para construir uma casa. Ao propormos os limites da área levamos em consideração a necessidade primordial de incluir-se na terra indígena dois importantíssimos sambaquis ainda razoavelmente bem preservados, um dos quais ficara fora da área proposta pelo GT anterior.

Esse território sempre foi utilizado por todos os grupos Pataxó como local obrigatório de passagem e paragens nas suas andanças para visita aos parentes; em seus deslocamentos para o município de Porto Seguro e o distrito de Arraial D'Ajuda, onde estabeleciam suas trocas comerciais ou participar de festas religiosas católicas por eles incorporadas; sendo constantemente usado como acampamento de caça e coleta, de descanso e, eventualmente, como local de refúgio de grupos Pataxó.

O uso de espécies vegetais, já demonstrado no capítulo sobre Meio Ambiente é extremamente rico e importante para a reprodução física e cultural do grupo. Lembremos que, como observado anteriormente, até mesmo as espécies que não são apontadas como de uso direto pelos índios são por eles conhecidas e têm a sua utilidade indicada como "da natureza", revelando um conhecimento da importância de cada espécie em um conjunto, numa perfeita concepção do que designamos como ecologia. A fabricação de artesanato (utilitários, decorativos, armas, etc.) com 15 ocorrências, é um outro uso importante para espécies vegetais. O artesanato fabricado na área tem fins de ornamentação e de comércio. Como ornamentação são utilizados especialmente os colares, brincos, cocares e as tangas.

Os colares e brincos são feitos, na maioria das vezes, com sementes diversas colhidas dentro da T.I. e, eventualmente, com sementes trazidas das matas de Monte Pascoal ou de outras espécies exógenas, coletadas em quintais ou nas ruas das cidades. Para a fabricação destes também são usados fibras vegetais, conchas e outros moluscos e partes de animais: como a carapaça de tatu, ossos e dentes de diversos animais e plumas. Para a fabricação de cocares são usadas principalmente penas de aves, porém, como há escassez de muitos tipos de animais, são usadas penas de animais domésticos, especialmente, a Chukakai - galinhas (algumas vezes tingidas). São usadas pelas mulheres tiaras de fibras com enfeites pingentes, adornadas com conchas e sementes coloridas. As tangas (tupsai), na maioria das vezes, são feitas de entrecasca de árvores, batidas e alvejadas. Também podem ser feitas com taboa.

O uso de plantas medicinais é uma ciência que alguns poucos habitantes de Aldeia Velha ainda dominam, especialmente os mais velhos. Embora seja largo o uso de plantas medicinais, havendo pequenas hortas nos quintais em que são cultivadas diversas espécies para este fim; estas são geralmente espécies de uso conhecido pela população em geral, várias delas exógenas. O conhecimento de plantas nativas é mais restrito, mas vem sendo mais difundido hoje pelos mais velhos diante da disponibilidade de espécies nativas nas matas da T.I. Aldeia Velha.

No campo religioso o grupo adotou a prática do Toré (ou Awê), complexo religioso-ritual que marca a região nordeste, o qual foi "aprendido" de outras aldeias, principalmente dos Tuxá e Pataxó Hãe-Hãe-Hãe. Dançar o Toré é uma performance na qual o grupo se assume enquanto índio perante aos seus pares, perante as outras aldeias e também perante os "brancos". Portanto, nota-se grande empenho da comunidade em realizar esse cerimonial. Sua prática é regular, sendo feito geralmente nos fins-de-semana. A freqüência de uma família ao Toré é considerada um indicador do seu grau de compromisso social com o grupo. Como dissemos anteriormente, o ensino do Toré no escola é considerado pelas professoras como marco da diferenciação do ensino praticado na aldeia. A dança do Toré é indispensável nas ocasiões festivas, como o Dia do Índio e nas visitas de autoridades à aldeia. Durante o nosso trabalho de campo fomos convidados a participar de um Toré realizado à noite e na reunião final do trabalho novamente se dançou em comemoração à conclusão de mais essa etapa da sua luta pela terra.

6-LEVANTAMENTO FUNDIÁRIO

A Aldeia Santo Amaro sempre foi um ponto de referência e sempre foi um lugar que muitas famílias indígenas, especialmente de Vale Verde, procuraram se estabelecer. Nos anos 60 e 70 moravam no local cerca de 20 famílias indígenas, tendo as terras que ocupavam passado por um processo de grilagem. Surgiram fazendeiros que afirmavam que as terras eram deles e foram expulsando os índios que ali habitavam. Algumas destas famílias relatam que foram forçados a receber insignificantes indenizações pelas benfeitorias que ali possuíam, tendo em seguida os fazendeiros destruído as suas ocupações e suas casas. Durante os trabalhos os índios nos mostraram os inegáveis vestígios desta ocupação, testemunhados pelas árvores frutíferas e vestígios de outras plantações e de casas por eles deixadas.

Porém, os fazendeiros não conseguiram expulsar a todos, resistindo ainda no local D. Dió, uma das velhas componentes do grupo, que ali permaneceu com seus filhos apesar das ameaças e da pressão dos fazendeiros. A sua resistência foi uma referência para todos os outros e foi a partir da sua casa que os Pataxó penetraram novamente o território, numa tentativa frustrada de retomada no ano de 1993 e em outra bem sucedida, no ano de 1998.

Em função da tentativa de ocupação Pataxó a Empresa COSVAR AGROPECUÁRIA LTDA solicitou da FUNAI um Atestado Negativo da presença indígena no local. Apesar de existirem documentos relatando a tentativa de ocupação e o histórico da área, a FUNAI concedeu à Empresa o Atestado Administrativo Nº005/DAF, de 12.01.1994, quase um ano após a primeira tentativa de ocupação.

Já no ano de 1996, os índios continuavam a exigir a demarcação da terra indígena, motivo pelo qual a FUNAI incluiu-a na listagem das terras a serem identificadas no ano de 1997. Porém, não foi possível efetivar a criação do GT naquele período. Por este motivo, um grupo de 40 famílias Pataxó, fez nova investida sobre a área, desta vez conseguindo manter-se nela por força de liminar concedida pela 1ª. Região do TRF, a qual também determinava que a FUNAI prontamente realizasse a identificação e delimitação das terras ocupadas pelos índios.

Também no ano de 1998, após os Pataxó voltarem a ocupar a área, revendo sua falha, a FUNAI baixou a Portaria nº 270/PRES/98, a qual tornava insubsistente e sem nenhum efeito o Atestado Administrativo concedido à COSVAR, pelos motivos que expunha.

O GT criado pela FUNAI levantou durante o seu trabalho a existência de apenas 03 ocupantes não-índios: a COSVAR AGROPECUÁRIA LTDA, IVONE RAMOS DOS SANTOS E LAURENTINO JOSÉ DOS SANTOS e PALMIRA DE JESUS SOUZA.

Embora os técnicos responsáveis pelo levantamento Fundiário tenham apresentado seu relatório e entregue a relação de ocupantes não-índios, bem como os seus respectivos Laudos de Vistoria;

o Coordenador do GT, passados 04 anos da realização dos trabalhos de campo, ainda não havia entregado o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da área.

Enquanto isso tramitava na justiça o Processo nº 1999.3301.001134-0, relativo ao pedido de Reintegração de Posse aforado pela COSVAR AGROPECUÁRIA LTDA, o único ocupante das terras que fora efetivamente expulso delas pelos índios e impedido de prosseguir com suas atividades. Após ser realizado um reconhecimento da área delimitada pelo GT anterior, por meio fluvial e terrestre, tendo a ambientalista e o coordenador do GT decidido pela alteração do limite da área; verificou-se também a existência de ocupantes não relacionados no levantamento anterior e a possibilidade de haverem outros ocupantes nos limites alterados.

Durante o Levantamento Fundiário constatou-se que havia ocupantes não-índios cujas posses somente era possível o acesso por via fluvial, não tendo sido estes levantados pelo GT anterior. Constatou-se também que estes já se encontravam no local anteriormente ao trabalho de levantamento feito no ano de 1998. Os índios tinham inclusive a dúvida de que tivessem sido incluídas aquelas terras na delimitação, por não aparecerem aqueles ocupantes na relação elaborada pelo outro GT. A área onde se encontram estes ocupantes é tida pelos índios como uma "ilha", tendo em vista o fato de ser esta cercada pelo rio e por áreas temporariamente alagadas pelas marés.

Apesar de não constar dos mapas a existência da dita "ilha", diante da insistência dos índios, realizarmos exaustivo levantamento, chegando à conclusão e convencendo, com dificuldade, aos índios que aquelas terras pertenciam ao continente e que já estavam inclusas na delimitação anterior.

RELAÇÃO DOS OCUPANTES NÃO-ÍNDIOS

Deste novo levantamento resultou a inclusão de outros 08 ocupantes, os quais somados aos 03 do levantamento anterior, totalizaram 11, conforme relação a seguir: 1 - COSVAR Agropecuária Ltda; 2 - Ivone Ramos dos Santos; 3 - Palmira de Jesus Souza; 4 - Francisco Paulo Ferreira de Melo; 5 - Antônio Gonçalves da Conceição; 6 - Sebastião Pereira Bomfim; 7 - Deziane Souza Nascimento; 8 - Jorge de Tal; 9 - Ney Ramos Teixeira; 10 - Drª. Alice; 11 - Raimundo Ludovico da Pena.

* Na faixa entre a estrada Arraia D'Ajuda-Trancoso e a aldeia existem duas ocupações que não conseguimos saber os nomes do proprietários, pois as casas estavam fechadas.

Conclusão do Relatório Fundiário A ocupação não-índia na área é, em geral, recente, caracterizando-se mais pela posse do que pela propriedade. Em termos de tamanho da área ocupada, quase toda a área tem apenas 01 ocupante, a empresa COSVAR AGROPECUÁRIA LTDA. As outras ocupações são de pequeno e micro tamanhos.

Com relação às benfeitorias também a COSVAR AGROPECUÁRIA é a detentora quase exclusiva dos bens indenizáveis na área, tendo apenas IVONE RAMOS DOS SANTOS benfeitorias de valor significativo, mesmo assim constituídas, em sua maioria, em período posterior à realização dos primeiros trabalhos de levantamento fundiário realizados na T.I.. O valor total das benfeitorias indenizáveis em 2002 soma a quantia de R$ 207.244,77 (duzentos e sete mil, duzentos e quarenta e quatro reais e setenta e sete centavos).

Tal valor é insignificante diante dos longos anos de luta e de investimento social dos Pataxó nesta área, como também diante das benfeitorias implantadas pelos índios na área ao longo destes 07 anos de ocupação recente, dos mais de 40 anos ininterruptos de ocupação de D. Dió e de outros parentes que de lá foram expulsos, além de toda a história de ocupação indígena da área.

No último levantamento (2007), detectamos que houve uma tentativa de implantação do loteamento próximo à área de mangue no Buranhém, nos fundos da terra indígena, de propriedade da família RAMOS. Verificamos durante o levantamento de campo que houve um investimento em instalação de postes para iluminação pública e vias de acesso ao loteamento. Encontramos ainda uma nova casa de pequeno porte construída na entrada do loteamento. Os índios entraram com uma ação judicial e conseguiram paralisar a continuidade das obras no loteamento.

Outras três ocupações foram inseridas no levantamento complementar.

Havia certa indecisão no posicionamento dos índios quanto se mantinham os limites SUL na estrada antiga (ainda de terra), ou no novo traçado (asfaltado) da estrada que dá acesso a Eunápolis e Trancoso. Decidindo por indicar a estrada atual como limite, incluímos uma pequena faixa de terra entre uma cerca da TI e a estrada, onde existem três pequenas ocupações de não índios

7-CONCLUSÃO E DELIMITAÇÃO

No decorrer desse relatório foi demonstrado haver um consenso histórico sobre a tradicionalidade da ocupação indígena, constatado através de registros históricos oficiais, e pela história oral do grupo. História essa que registra uma relação de ocupação permanente dessas terras. Ocupação que se dá inicialmente no plano simbólico, sendo ela sempre considerada como uma "terra de índio", referência das origens da aldeia Barra Velha, do povo Pataxó e dos caboclos de Vale Verde, sendo para todos a verdadeira Aldeia Velha, uma espécie de avó de todas as outras. Mas que também se dá no plano concreto, através do uso sazonal pelos chamados "caboclos de Vale Verde" e pelos Pataxó de Barra Velha, durante deslocamentos e fugas ou na busca dos muitos recursos naturais de que dispõe, como os seus mangues, suas matas e também o barro, que iria se tornar fonte de renda de muitas que ali se fixariam. A habitação permanente de várias famílias na área é confirmada por vestígios arqueológicos dos períodos pré-colonial, colonial e pós-colonial, pelos pomares e outros vestígios presentes no interior das matas e nas margens do rio Buranhém. A área atraiu para si famílias oriundas de Vale Verde e também famílias de Barra Velha (e entorno), àquelas ligadas por relações de parentesco e afinidade.

Apesar da tentativa de esbulho perpetrada nos anos 80, nem assim lograram afastar definitivamente os índios dali. D. Dió e seus filhos resistiram bravamente e da terra jamais arredaram os pés, a despeito de todas as pressões e ameaças sofridas. Os outros se reorganizaram em torno da liderança do Cacique Ipê, através da Associação dos Pataxó Sem Terra e, tendo como base a ocupação de D. Dió, já em 1993 realizavam a primeira tentativa de retomada. Frustrada aquela tentativa, isso apenas serviu para melhor organizar o movimento. Cinco anos depois da primeira tentativa, novamente eles se lançaram à empreita da retomada. Agora bem sucedidos, consolidaram e sustentaram a ocupação e ali já vivem há mais de 10 anos, sem que qualquer tipo de tentativa de reverter os fatos, como ameaças, ações judiciais ou propostas de deslocamento para áreas alternativas, lhes tenham feito mudar o intento de permanecerem naquelas terras e nelas garantirem a sobrevivência do seu povo.

Vimos também algumas referências com alto valor simbólico e cultural para os Pataxó, presentes nessas terras, às quais devem ser consideradas como parte integrante de seu processo de reprodução cultural. A existência de sítios arqueológicos, locais de antigas moradias e a própria referência do local como sendo "local de origem" de todas as outras aldeias da região e ainda mais por possibilitar a prática do modo vida indígena para um grupo que se encontrava "desterritorializado", torna essas terras indispensáveis á reprodução cultural dos índios que nela habitam.

Com base nessas referências, que constituem os argumentos legais que fundamentam a demarcação de uma terra indígena, descreveremos a seguir os limites propostos para a T.I. Aldeia Velha, justificando-os.

7.1 - Descrição dos limites

- LIMITE NORTE: Tem início no ponto 01, situado na margem direita do rio Buranhém, em frente à desembocadura de um canal artificial, de onde segue pela margem Direita do Rio Buranhém até a foz do rio Santo Amaro. Este limite reveste-se de extrema importância por incorporar as áreas de mangue do Rio Buranhém, de grande significância ambiental e de grande utilidade para a sobrevivência dos índios de Aldeia Velha. Ao mesmo tempo permite o acesso dos índios ao Rio Buranhém, importante canal de acesso e rica fonte de alimento para a comunidade.

Nesse trecho, à margem do Rio Buranhém, também estão localizados os principais sambaquis encontrados na área e vários outros sítios arqueológicos mais recentes, onde se encontram antigos pomares e fornos identificados na pesquisa arqueológica realizada na área.

LIMITE LESTE: Este limite segue pelo Rio Santo Amaro, por dentro do mangue até a cabeceira desse rio, de onde passa a percorrer a área de transição entre o mangue e a floresta, conhecida pelos índios como apicum. Ele incorpora um importante trecho de mangues e aí ocorre uma paisagem única na área, o apicum, região de transição entre o mangue e a mata, rica em espécies, muitas delas úteis como alimento e de uso medicinal. Nessa região também ocorrem vastos bosques de frutas nativas, principalmente o caju e a mangaba, muito apreciados pelos índios.

No interior do fragmento de mata, o limite segue pela cerca de limite da Fazenda Santo Amaro.

Esta pequena área de mata é muito importante, por estar situada nos fundos das casas da aldeia, sendo muito utilizada para coleta e caça, devido a sua proximidade. No interior da mata também existem vários vestígios de moradias antigas dos índios que ali sempre viveram, como ruínas de fornos de barro, e pomares antigos, elementos fundamentais para a preservação da memória da ocupação indígena do local.

LIMITE SUL: Este segue margeando a rodovia e incorpora a mais importante área de mata da T.I. Aldeia Velha, fundamental para a caça e coleta e para a própria preservação do modo de vida indígena. É em clareiras e capoeiras dessa região que também está situada a maioria das roças. O fato do limite seguir margeando a rodovia, apesar de facilitar o acesso, dá maior visibilidade ao mesmo.

Quando realizado o primeiro GT essa rodovia ainda não era asfaltada. Com o asfaltamento houve uma pequena alteração do traçado da estrada em um trecho. Optamos por continuar, no trecho da estrada atual que dá acesso à Trancoso e Eunápolis.

LIMITE OESTE: Tem início na margem da rodovia que segue de Arraial D'Ajuda para Eunápolis, no limite da Fazenda Santo Amaro com a antiga Fazenda Japara, seguindo rumo ao norte pela cerca que separa as duas propriedades, onde do lado direito se encontra a mata pertencente à Fazenda Santo Amaro, até o ponto em que dos dois lados da cerca há uma continuidade da mata. A partir daí, então a linha divisória toma um rumo transversal para o oeste, seguindo a linha da mata até o ponto de divisa entre a Fazenda Japara e outra propriedade vizinha situado na margem do leito antigo do Rio Buranhém.

Essa linha divisória não coincide com a proposta pelo GT anterior, o qual adotava o limite entre a Fazenda Japara e Fazenda Santo Amaro. Segundo os índios, essa proposta de limite tinha a ver com o fato dos ditos proprietários da Fazenda Japara serem considerados como índios, pertencendo reconhecidamente ao grupo dos "caboclos de Vale Verde" e por terem um irmão que vive na Aldeia Velha.

Como esses não desejavam se juntar ao povo de Aldeia Velha, havia sido feito um acordo para não molestá-los. Porém, a situação local havia se alterado significativamente nos últimos anos, tendo os "parentes" da Fazenda Japara repassado suas posses a terceiros, fato que deixava os índios de Aldeia Velha descompromissados com aquela proposta.

Como dissemos anteriormente, achamos por bem alterar esse limite para garantir a proteção de um importante sambaqui que estava fora da área proposta anteriormente, embora fosse citado no estudo e, ainda, para evitar a quebra de uma paisagem típica, a dos campos nativos, a qual era cortada ao meio pelo limite anteriormente proposto. Tendo com isso ainda incorporado fragmentos de mata da área da Fazenda Japara, os quais vêm sendo muito rapidamente destruídos com o processo de "loteamento' das terras daquela fazenda.

Leila Silvia BurgerSotto-Maior Antropóloga /Assessora DAF/PRES DESCRIÇÃO DO PERÍMETRO NORTE: Partindo do Ponto P-01 de coordenadas geográficas aproximadas 16º26'42" S e 39º07'11" WGr., localizado na margem direita do Rio Buranhém, em frente a um canal deste rio, seguese, a jusante, pelo Rio Buranhém até o Ponto P-02 de coordenadas geográficas aproximadas 16º27'26" S e 39º04'13" WGr., localizado na foz do Rio Santo Amaro. LESTE: do ponto antes descrito, segue pela margem direita do Rio Santo Amaro, a montante, até o Ponto P-03 de coordenadas geográficas aproximadas 16º27'42" S e 39º04'47" WGr., localizado em um pequeno pier; daí, segue pelo mangue, numa linha seca até o Ponto P-04 de coordenadas geográficas aproximadas 16º28'30" S e 39º04'40" WGr., localizado no final de uma cerca divisória; daí, segue pela cerca, até o Ponto P-04A de coordenadas geográficas aproximadas 16º28'33" S e 39º04'41" WGr.; daí, segue em uma linha reta até o Ponto P-05 de coordenadas geográficas aproximadas 16º28'34" S e 39º04'44" WGr.; daí, segue em linha reta até o Ponto P-06 de coordenadas geográficas aproximadas 16º28'44" S e 39º04'57" WGr.; daí, segue em uma linha reta até o Ponto P-07 de coordenadas geográficas aproximadas 16º28'43" S e 39º05'05" WGr.; daí, segue em uma linha reta até o Ponto P-08 de coordenadas geográficas aproximadas 16º28'52" S e 39º05'05" WGr; localizado próximo a porteira que dá acesso a aldeia e confluência cruzamento com a faixa de domínio da estrada para Trancoso. SUL: do ponto antes descrito, segue pela estrada que dá acesso a Trancoso citada faixa de domínio, seguindo em direção a Trancoso, até o Ponto P-09 de coordenadas geográficas aproximadas 16º28'55,1" S e 39º07'10,8" WGr., localizado na margem faixa de domínio direita da rodovia, sentido Trancoso e canto de uma cerca, onde se encontra um imóvel com edificações; daí segue pela cerca até o Ponto P-10 de coordenadas geográficas aproximadas 16º28'54,5" S e 39º07'10,9" WGr; localizado num canto de cerca; daí segue pela cerca até o Ponto P-11 de coordenadas geográficas aproximadas 16º28'57,6" S e 39º07'22,0" WGr., localizado no canto de uma cerca e na margem faixa de domínio da rodovia do Trancoso. OESTE: do ponto antes descrito, segue pela rodovia citada faixa de domínio, em direção a Vale Verde até o Ponto P-12 de coordenadas geográficas aproximadas 16º28'12" S e 39º07'42" WGr., localizado num canto de cerca, daí segue em linha reta até o Ponto P-13 de coordenadas geográficas aproximadas 16º28'09" S e 39º07'34" WGr.; daí, segue em linha reta até o Ponto P-14 de coordenadas geográficas aproximadas 16º28'02" S e 39º07'29" WGr.; daí, segue em linha reta até o Ponto P-15 de coordenadas geográficas aproximadas 16º27'50" S e 39º07'31" WGr.; daí, segue em linha reta até o Ponto P-16 de coordenadas geográficas aproximadas 16º27'14" S e 39º08'04" WGr., localizado na margem direita do antigo leito do Rio Buranhém; daí, segue por esta margem, a jusante, até o Ponto P-01, início da descrição deste perímetro. OBS: a) Base cartográfica utilizada neste memorial descritivo: SE.24-V-B-III - Escala 1: 100.000 - DSG; b) As coordenadas geodésicas citadas neste memorial descritivo são referenciadas ao Datum Horizontal SAD - 69. Responsável Técnico pela Identificação dos Limites:José Antonio de Sá, Engenheiro Cartógrafo - Funai AER JPA, CREA - 15.455/D PR.