Despacho FUNAI nº 22 de 15/05/2008

Norma Federal - Publicado no DO em 20 mai 2008

Aprova as conclusões objeto do citado resumo para afinal, reconhecer os estudos de identificação da Terra Indígena SURURUÁ de ocupação dos grupos tribais Kokama e Tikuna, localizada nos municípios de Benjamin Constant e São Paulo de Olivença, Estado do Amazonas.

O PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI, tendo em vista o que consta no Processo FUNAI/BSB/1007/08, e

Considerando o Resumo do Relatório de Identificação, de autoria da antropóloga Priscila Matta que acolhe, face às razões e justificativas apresentadas, decide:

1. Aprovar as conclusões objeto do citado resumo para afinal, reconhecer os estudos de identificação da Terra Indígena SURURUÁ de ocupação dos grupos tribais Kokama e Tikuna, localizada nos municípios de Benjamin Constant e São Paulo de Olivença, Estado do Amazonas.

2. Determinar a publicação no Diário Oficial da União e Diário Oficial do Estado do Amazonas, do Resumo do Relatório Circunstanciado, Memorial Descritivo, Mapa e Despacho, na conformidade do § 7º do art. 2º do Decreto nº 1.775/1996.

3. Determinar que a publicação referida no item acima, seja afixada nas sedes das Prefeituras Municipais da situação do imóvel.

MÁRCIO AUGUSTO FREITAS DE MEIRA

RESUMO DO RELATÓRIO DE IDENTICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DA TERRA INDÍGENA SURURUÁ

Referência: Processo nº 08620.001007/08. Terra Indígena: Sururuá. Localização: Municípios de Benjamin Constant e São Paulo de Olivença, Estado do Amazonas. Superfície: 36.125 ha. Perímetro: 123 km. Sociedade Indígena: Kokama e Tikuna. Família lingüística: Tupi-Guarani. População: 197 habitantes (12/2004). Identificação: Grupo Técnico constituído pela Portaria nº499/PRES, de 09 de junho de 2003 e nº572/PRES, de 17 de junho de 2003, coordenado pela antropóloga: Priscila Matta.

APRESENTAÇÃO

O presente relatório fundamenta a proposta de limites da Terra Indígena Sururuá, reivindicada pelo povo Kokama e localizada nos municípios de Benjamin Constant e São Paulo de Olivença, região sudoeste do Estado do Amazonas.

Este trabalho teve como referência o disposto pelo Título III - Das Terras dos Índios da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, o art. 231 e parágrafos da Constituição Federal de 1988, o Decreto nº 1775, de 8 de janeiro de 1996 e a Portaria MJ nº 14, de 9 de janeiro de 1996, visando a garantir as áreas habitadas em caráter permanente, as áreas utilizadas para suas atividades produtivas, as áreas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem estar e as áreas necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Na definição dos limites consideramos os conhecimentos técnicos dos participantes do GT, documentos e material bibliográfico sobre a região e sobre os Kokama, e a proposta e conhecimentos dos moradores da comunidade Nova Aliança, identificados como Kokama e habitantes do que delimitamos como Terra Indígena Sururuá. Com superfície e perímetro aproximados de 36.125 ha (trinta e seis mil, cento e vinte e cinco hectares) e 123 km (cento e vinte e três quilômetros) respectivamente, conta com uma população de 197 habitantes.

O grupo técnico foi então composto por Luís Mauro Gomes Ferreira, ambientalista, Reginaldo de Oliveira Carvalho, responsável pela parte cartográfica, Josemar Araújo Andrade, técnico agrícola do quadro da FUNAI, José Jurimar da Silva Maia, técnico agrícola lotado na unidade do INCRA de Benjamin Constant, encarregados do levantamento fundiário e a antropóloga-coordenadora Priscila Matta.

Este estudo de campo e os levantamentos realizados para identificação e delimitação dessa terra indígena foram autorizados pelas Portarias nº 499/PRES de 9 de junho de 2003 e nº 572/PRES de 17 de junho de 2003 as quais definiram o grupo técnico e os prazos para a realização do trabalho de campo e do relatório circunstanciado de identificação e delimitação, com duração de 9 de junho a 16 de julho de 2003 - incluindo deslocamentos e estudos da Terra Indígena Guanabara, também Kokama.

I - DADOS GERAIS

a) Caracterização dos Kokama Os Kokama estão distribuídos ao longo do Alto e Médio Amazonas até o vale do Rio Ucayali, no Peru. A língua Kokama pertence à família lingüística Tupi Guarani, tronco Tupi.

Os depoimentos dos cronistas das primeiras expedições a explorarem o Alto Amazonas indicam que, no século XVI, a língua dos Kokama e dos Omáguas era muito próxima da Tupinambá (família Tupi-Guarani, tronco Tupi) falada na costa brasileira, sendo produto de trocas inclusive lingüísticas, não havendo essencialmente uma relação de natureza originária, mesmo tendo ocorrido contatos intensos entre esses grupos; o que fica claro foi uma forma de colaboração, ou talvez o empréstimo para uma transformação da língua Kokama. Ana Suelly A. C. Cabral (1996), informa que no Peru cerca de 2% da população Kokama que soma 19.000 pessoas, fala a língua materna como primeira língua. Já no Brasil, são poucos os Kokama que ainda praticam a língua nativa.

Na comunidade Nova Aliança, encontramos moradores que falam palavras ou mesmo a língua Kokama, sendo que a maioria relata que seus pais e avós se comunicavam no idioma indígena, não tendo eles aprendido porque havia uma forte pressão para falarem a língua oficial. Alguns migraram do Peru sendo também falantes de espanhol; e ainda, há aqueles que informaram que seus pais conhecem bem a língua inca ou quêchua, própria de povos andinos. Isso revela que os Kokama são conhecedores de diversas línguas, influência provável dos contatos com vários povos.

No Brasil, os dados demográficos somavam 1.395 indivíduos, em 1998. No entanto, são números aproximados uma vez que há um movimento crescente de reconhecimento da identidade indígena apoiado pela organização indígena OGCCIPC-Organização Geral dos Caciques das Comunidades Indígenas Povo Kokama, além de haver Kokama que moram em cidades do Alto Solimões, e não foram contabilizados por esse levantamento; e outros, que negam a identidade indígena.

b) Ocupação do Alto Solimões A ocupação do alto Solimões ocorreu, principalmente, a partir de metade do século XVII. Parte da história do alto Solimões é descrita por cronistas dos séculos XVI e XVII que encontram uma população numerosa e distribuída em povoados extensos, produzindo excedentes que circulavam intensamente fomentando um comércio de produtos primários e manufaturados entre os povos.

Além das inter-relações em grandes instâncias comerciais, chegaram na região os missionários espanhóis, os coletores de drogas, tropas e missionários portugueses. O avanço dessas empresas significou dispersão dos povos que lá habitavam, reordenação dos padrões de relações e territoriais, ocorrendo inclusive o apresamento de grande parte dessas populações ribeirinhas. Nos últimos anos do século XVII, a várzea amazônica estava com uma população reduzida que lidava também com epidemias letais trazidas pelos brancos. Em decorrência do despovoamento da várzea, povos da terra firme começam a ocupar esse território, como os Ticuna, e as populações ribeirinhas que então eram majoritárias, acabaram sendo tratadas como desaparecidas, como é o caso dos Kokama.

Em grande parte dos relatos dos viajantes, contamos com dados sobre os Omágua, moradores das margens e ilhas do Alto Amazonas, e escassa referência sobre os Kokama, com indícios de ocuparem a extensão do médio e alto Amazonas e de ter ocorrido casamentos com os Omágua, principalmente nos aldeamentos. Os Omágua ocupavam as margens e ilhas do Solimões em uma superfície de cerca de 700 quilômetros.

No século XVIII, a região do Alto Amazonas foi caracterizada pelo recrutamento e servidão de mão-de-obra indígena nas vilas e fazendas portuguesas, processos marcados por combates, massacres e fuga de muitos índios para o interior, terra firme ou para o Peru. O final do século XIX foi marcado pelo ciclo da borracha, instituído sob o sistema de servidão.

Há um hiato em relação à documentação sobre os Kokama, mas o que percebemos com esse movimento recente de reconhecimento da identidade - durante muito tempo foram considerados quase extintos, principalmente no Brasil - é que ficaram de certa forma "escondidos", "camuflados" e agora estão sentindo um momento mais propicio ao "aparecimento".

c) Movimentação e distribuição dos Kokama

Os Kokama estavam distribuídos pelo alto e médio Amazonas, sendo em muitos momentos sua história confundida com a dos Omágua. Como os relatos sobre os Omágua são mais extensos e completos do que as abordagens sobre os Kokama, utilizaremos como referência os documentos sobre os Omágua para situar os Kokama e mostrar a região onde ainda são encontrados.

Há referências de viajantes, como Paul Marcoy (séc. XIX), de ter encontrado Kokama e Omágua no Alto Solimões; e também, sobre o processo de colonização e a atuação dos missionários que incentivaram a miscigenação dos Kokama com os Omágua. Concluímos se tratar essa região efetivamente de território kokama, atestando assim inclusive ocupação tradicional em sentido temporal, além de ser utilizado como habitação permanente.

Os Kokama estavam espalhados sendo encontrados em missões no Baixo e Alto Huallaga onde, desde o século XVII, os jesuítas os haviam reunido. "Os Omagua, assim como seus vizinhos Cocama, são grupos da língua Tupi, deslocados para o noroeste da Amazônia. Há evidências cada vez mais fortes de que eles migraram rio acima, do médio para o alto Amazonas, durante o primeiro milênio da nossa era, tendo alcançado o baixo Napo nos séculos 9 ou 10 d. C e o alto Napo somente nos séculos 14 ou 15" (Marcoy;2001:98).

Provavelmente, as migrações sentido leste-oeste, em direção ao rio Ucayali e ao rio Huallaga, foram deslocamentos circunstanciais tendo ocorrido tanto por fortes pressões dos missionários, principalmente espanhóis, como por opressões em decorrência da colonização portuguesa com vistas à escravização e utilização indiscriminada da mão-de-obra indígena. "Os Omagua constituíram, junto com os Cocama, que ainda habitam a bacia do Ucayali, grupos tupiguarani deslocados para o alto Amazonas. A maioria dos autores modernos concorda quanto ao caráter recente (não muito anterior ao século XVI) da ocupação, pelos Omagua, da Amazônia peruana e equatoriana" (Porro;1996:92).

O sistema fluvial e principalmente o trajeto do rio Amazonas foi e é um caminho natural cujo percurso não fica restrito às fronteiras político-administrativas. Muito antes de serem definidas as fronteiras atuais do Brasil, Peru e Colômbia, os povos que habitavam e ainda habitam essa região utilizam o rio como fonte de recursos, mas também como caminho que os levam ao encontro dos parentes, dos produtos e no caso de povos Tupi-Guarani, ao mundo de abundância e felicidade, símbolo da mitologia e crença desses grupos.

No Brasil, até os anos 70, os Kokama foram considerados como extintos. Em 1983, Antônio Samias, liderança Kokama, se uniu com alguns capitães Ticuna, entrando em contato com os direitos dos povos indígenas e dos Kokama. Então Antônio Januário Samias e, seu filho, Francisco Guerra Samias começam a organizar os moradores de Sapotal - comunidade localizada no rio Solimões - em torno da discussão da identidade Kokama, fortalecendo uma organização dos Kokama na região. Este movimento incentivou muitos indivíduos e até comunidades inteiras, a assumir a identidade indígena e a lutar pelos respectivos direitos.

Atualmente, seguindo um padrão migratório, os Kokama estão realizando um movimento no sentido leste. Os Kokama foram marcados por um processo migratório sentido leste-oeste, no começo da colonização e, atualmente, estão caminhando em sentido inverso, inclusive, motivados pelas designações de um suposto messias, que percorreu a região décadas atrás.

Hoje estão distribuídos, no Brasil, nos municípios de Tabatinga, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença, Tonantins, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Fonte Boa, Jutaí e Tefé, e segundo Cristóvão Moçambite, Presidente da OGCCIPC, há no Alto Solimões 42 comunidades Kokama.

d) A Irmandade da Cruzada

Houve uma adesão por grande parte dos Kokama à Ordem Cruzada Católica Apostólica e Evangélica, conhecida como a Irmandade da Santa Cruz (ISC), por remeter ao seu sistema de representação religiosa. Na década de 70, esse movimento de caráter milenarista, fundado por Francisco José da Cruz, atraiu a adesão de povos indígenas e ribeirinhos da região amazônica e encontra, até os dias de hoje, seguidores ortodoxos, inclusive os Kokama de Nova Aliança. Os símbolos dessa irmandade são a Bíblia e a Cruz, marcos da salvação; deveriam seguir a doutrina fixada pelo messias que pregava um movimento escatológico. Sua ordem deveria congregar todos os cristãos para salvá-los antes do fim dos tempos que se aproximava.

"A adesão à Irmandade da Santa Cruz é feita quase sempre por famílias inteiras e não por indivíduos isolados. Dos novos membros se exige que habitem numa comunidade em torno de uma cruz erguida ou benta por Ir. José" (Oro;1989:96).

Os Kokama buscam um lugar de fartura e de felicidade, onde encontrariam a salvação prometida. O movimento messiânico de Francisco José da Cruz, através da Irmandade da Santa Cruz, expressou esta cosmovisão.

O. Agüero (1985) mostra que as "comunidades religiosas" estão fomentando a coesão Kokama, pois se encontravam dispersos em decorrência da própria história da colonização e ocupação da Amazônia; estão se reagrupando baseados em valores religiosos, fator que vem também fortalecendo a identidade indígena, como percebemos em Nova Aliança.

II - HABITAÇÃO PERMANENTE

Na Terra Indígena Sururuá, localizada na margem direita do rio Solimões, nos municípios de Benjamin Constant e de São Paulo de Olivença, há uma comunidade Kokama denominada Nova Aliança; duas comunidades que se reconhecem como não-indígenas, Sururuá e Bom Pastor II; e, a propriedade de João Guedes Hayder. Nova Aliança foi formada na beira do rio Solimões, em local de terra firme, em um setor topograficamente alto, próximo às bordas das falésias da margem do rio.

A população da Terra Indígena Sururuá é composta POR 197 pessoas cuja comunidade está localizada na beira do rio Solimões. Estar próxima a cursos de água é um dos critérios para a ocupação e formação da comunidade por ser uma população ribeirinha que vive essencialmente dos recursos do rio grande e da floresta. O modo de vida dessas pessoas está principalmente relacionado ao rio Solimões, como caminho natural, por onde estabelecem vínculos de parentesco, religiosos, econômicos e comerciais, ou, como importante fonte piscosa fornecedora da base alimentar Kokama; ou mesmo como acesso às cidades de Benjamin Constant e de Tabatinga, e, consequentemente, aos serviços por elas oferecidos. Há o rio Jandiatuba, de águas perenes - no outro extremo do território - onde planejam, futuramente, com o aumento da população, formar outra comunidade.

No âmbito simbólico e cultural, o principal motivo para a construção das moradias e a fixação do grupo foi em decorrência do movimento da cruzada. O local foi escolhido pelo próprio Irmão José, onde "plantaram" uma cruz e construíram a Igreja, ficando assim consagrado. Aliado à movimentação em busca da "cruz", os laços de parentesco são também elementos fundamentais para a "atração" dos parentes, tanto consangüíneos como afins, e constituição da comunidade.

O padrão de ocupação almejado seria a construção das casas acompanhando a margem do rio, visando a ficarem em posição de acessibilidade às roças e locais de pesca. Com o crescimento da população, tanto pelo nascimento como pela chegada de grupos domésticos, e as limitações espaciais devido à existência de localidades não-indígenas, a tendência foi penetrar gradativamente na mata, a partir do rio Solimões. Este movimento gerou dificuldades para as tarefas básicas como pegar água, lavar roupa e utensílios, e tomar banho.

A unidade organizacional do espaço doméstico é a casa; construída, em geral, sobre estacas, por estar localizada em uma floresta úmida, com índice pluviométrico elevado e o terreno estar quase sempre enlameado, com teto de palha e laterais de madeira. As estruturas das casas geralmente são de madeira de lei, com uma durabilidade maior do que as paredes e tetos, que são trocados de três a cinco anos, e as casas reformadas a cada dez anos. No fundo e nas laterais das casas a regra é a existência de um espaço ricamente domesticado, os quintais, onde cultivam árvores frutíferas, plantas medicinais e verduras.

a) Comunidade Nova Aliança

A Comunidade Nova Aliança constitui um grupo local, composto por 197 pessoas distribuídas em 32 casas, formando uma unidade em relação às comunidades vicinais. O referencial comunitário está fundamentado em uma organização política, social e religiosa próprias, sedimentado pelos laços de parentesco e pela identidade Kokama. Estão em constante relacionamento, principalmente econômico e político, com as demais comunidades do Alto Solimões, com o município de Benjamin Constant e de Tabatinga. O rio Solimões é a única via de comunicação com as demais cidades e comunidades, sendo a canoa com o motor de rabeta, construída na própria comunidade com madeira da mata, o único meio de transporte dos moradores.

O principal elemento de formação dessa comunidade foi a reunião de grupos domésticos dispersos em torno do movimento da Cruz do irmão José, por agregar membros dessa irmandade em torno da cruz "plantada" na frente da igreja. O parentesco também é um fator fundamental para incorporação de novas pessoas. Os primeiros moradores formaram esta comunidade, há 22 anos, por indicação de Francisco José da Cruz o qual inclusive sugeriu o nome de Nova Aliança. O terreno de Nova Aliança foi doado pelo Prefeito que chamam de Alcindo, e seu Secretário conhecido como João Português. Na época, 1980, não eram identificados como Kokama. Aquiles Januário de Assis conta que "quem deu a ordem de morarem aqui foi Irmão José que tinha marcado exatamente esse local para formar uma comunidade".

O padrão de migração, ao longo do rio Solimões e seus afluentes, de comunidade para comunidade, é carregar a família extensa para locais que comportem acomodar e disponham de terra suficiente para o desenvolvimento do trabalho agrícola familiar. Em caso de mudança vai toda parentela, essa é a lógica de criação de um novo local para residir.

Um elemento fundamental para a identificação indígena é o sobrenome que classifica a família quanto ao pertencimento à identidade Kokama, de acordo com Roberto Romero Rodrigues, cacique da comunidade. Alguns exemplos de sobrenomes reconhecidos como Kokama são: Narvais, Januário, Curico, Muraiari, Chota, Moçambite, Auanari, Pacaio, entre outros.

Atualmente, o vinculo das famílias formadoras dessa comunidade está completamente efetivado em decorrência de relações de consangüinidade, afinidade e compadrio. A maioria dos moradores se auto-identificam e são identificados como Kokama, havendo uma pequena parcela de Ticuna - casados entre si e com Kokama - e alguns não-índios - também casados com Kokama - declarando ser as gerações descendentes desses casamentos inter-étnicos.

Em decorrência de o terreno possuir uma metragem de aproximadamente 500 m de frente para o rio Solimões, o espaço tornou-se insuficiente para o crescimento da comunidade. A distribuição dos terrenos, tanto para construção das casas quanto para o cultivo das roças, é feita, geralmente, no momento em que os filhos estão pretendendo se casar. O requisito para o casamento é o moço possuir roça própria para poder sustentar sua nova família.

O movimento da cruzada colaborou para a união dessas pessoas que possuem um histórico de vida comum, sendo reunidos em Nova Aliança seja pela Irmandade ou pelo parentesco. Atualmente, um outro fundamental elemento agregador é a própria identidade indígena, mobilizando e organizando os moradores dessa comunidade nessa terra indígena, em torno de uma unidade social, cultural e econômica.

III - ATIVIDADES PRODUTIVAS

As atividades produtivas estão baseadas principalmente na agricultura e pesca, na extração de produtos da floresta e, de uma maneira menos regular, na caça. Esses são os meios de vida essenciais para a sobrevivência dos moradores dessa comunidade. As relações comerciais com as cidades de Benjamin Constant e de Tabatinga são destinadas à complementação de produtos básicos utilizados pelas famílias e ocorrem constantemente. Habitam o ecossistema de terra firme, cultivam plantações temporárias na várzea da ilha Arariá, situada no rio Solimões em frente à comunidade Nova Aliança; dependem essencialmente deste rio para subsistência e como via de transporte, tendo o mesmo grande importância cultural e social.

As relações de produção estão vinculadas aos laços de parentesco, cuja unidade produtiva elementar é o grupo doméstico. Os ciclos das águas e os índices pluviométricos condicionam e indicam a seqüência das atividades de produção, organizando um calendário anual de atividades e consumo, garantindo, em decorrência dos valores e sistemas de cultivo próprios, o abastecimento anual das comunidades.

a) Agricultura

A classificação do ambiente pelos Kokama é polarizada em "beira" e "centro", cuja referência é o distanciamento em relação à margem do rio Solimões, onde observamos a diminuição gradual da domesticação do espaço à medida que se vai entrando na mata. A ocupação da "beira", além de um sentido pragmático tem um marco simbólico fundamental na caracterização da identidade Kokama. Classificam-se como índios "civilizados" e estudados, em oposição aos índios "bravos", habitantes da mata, local conhecido como "centro".

Os Kokama são povos agricultores, observação comprovada pelos quintais das moradias. Consideram a terra firme o local mais apropriado para a realização das roças, as quais têm como produtos principais os de cultura temporária e as plantas de raiz. A terra firme está dividida em capoeira e terra bruta, de acordo com a vegetação e a gradual domesticação das matas.

O local de plantio que passa por um processo de manejo e descanso da terra é a capoeira. É muito valorizado o cultivo de árvores que produzem frutas e possuem propriedades medicinais e madeira de lei, sendo uma importante fonte de produtos agroflorestais, significando um espaço constante de alimentos disponíveis durante o ano, pois são preservadas todas essas modalidades de árvores, podendo eventualmente configurar-se como fonte de renda pela troca do excedente nas cidades próximas.

A unidade produtiva, geralmente, está centrada na família nuclear sendo desenvolvida através do trabalho manual, sem a utilização de fertilizantes ou defensivos agrícolas. Quando em uma residência mora uma família extensa, cada unidade familiar cultiva sua própria roça.

Espaço para o cultivo é o grande impasse de Nova Aliança, que possui um terreno frontal de cerca de um quilômetro, estando limitado não somente o crescimento da comunidade como o desenvolvimento de atividades produtivas. Hoje, para chegar nas roças caminha-se cerca de duas horas, sentido centro. As roças estão sendo cultivadas cada vez mais para o interior, por não haver espaço suficiente para colocá-las lateralmente, próximas às casas. Atualmente, estão ocupando as imediações do igarapé Jabuti. A faixa mais próxima da comunidade apresenta uma larga extensão de capoeira com baixa produtividade; dois quilômetros em direção ao fundo do território estão ocupados e já foram muito aproveitados para a agricultura.

b) Pesca

Os Kokama são exímios pescadores, cuja subsistência e modo de vida estão totalmente ligados a essa atividade, realizada no rio Solimões, nos rios, igarapés e lagos localizados nas proximidades da comunidade Nova Aliança. O peixe faz parte, quando disponível, de praticamente todas as refeições diárias, sendo a salga, quando há excedente, o meio utilizado para a conserva.

As atividades de pesca são reguladas pelo ciclo fluvial que determina os locais de pesca e tipos de peixe que variam de acordo com o período de seca ou cheia dos rios, igarapés e lagos. As localidades utilizadas para as atividades pesqueiras são o rio Solimões, os igapós, os igarapés das proximidades, e os lagos da Ilha Araria - localizada em frente à terra indígena em estudo - como: Curupira, Sacambu, Cachoeira, Pouca, Lino, Cigana e Ressaca.

A época de maior abundância de peixe é no período de estiagem; o rio começa a secar em julho e a encher em novembro. No rio Solimões a pesca é realizada principalmente entre os meses de agosto e novembro, período seco, conhecido como época do verão; nos igapós, entre julho e agosto; nos igarapés e nos lagos entre os meses de agosto e novembro. Tanto os igarapés localizados na Terra Indígena Sururuá, como os encontrados nas imediações - por exemplo o igarapé Noaca -, são importantes estoques de peixes, por isso a necessidade de assegurarmos a proteção de suas cabeceiras - concentradas principalmente ao sul do território identificado, fazendo limite com as Terras Indígenas São Leopoldo e Feijoal - e dos recursos hídricos e pesqueiros do entorno.

c) Coleta

A coleta é atividade praticada intensivamente por todos os membros do grupo, em grande parte da extensão do território identificado, sendo fundamental para a subsistência física e cultural do grupo. Os produtos coletados são utilizados na alimentação, como remédios naturais, como combustíveis, para a construção de casas, canoas, remos, móveis, artefatos utilitários e objetos produzidos para serem comercializados; além da extração de frutos e mel de jandaíra.

O ciclo ecológico determina os locais e os produtos a serem coletados, sendo o conhecimento transmitido através das gerações. Observamos que no período seco do rio as atividades extrativistas são menos intensas, mas estão sempre presentes. Classifica em direção ao centro, isto é ao sul, o território em capoeira e terra bruta ou mata virgem, sendo a distribuição dos produtos ordenada de acordo com essa divisão. Na capoeira encontram-se árvores frutíferas, remédios naturais, madeira de lei, palhas diversas, cipós e fibras. Na terra bruta, sentido rio Jandiatuba - limite sul da terra indígena - há todas esses produtos em maior abundância, pois na capoeira muitas vezes fica difícil encontrar algumas espécies por ser uma cobertura vegetal modificada e já ter passado por processo de desmatamento; havendo então na mata virgem uma diversidade bem maior sendo algumas espécies só encontradas nesse local.

d) Caça

A caça é uma atividade masculina, realizada durante todo o ano, geralmente com freqüência mensal, havendo predominância nos meses de cheia do rio devido à diminuição de oferta de peixes, nessa época. Apreciam esse tipo de carne cozida ou assada, e na impossibilidade de uma caçada, acabam comprando algumas vezes na feira da cidade de Benjamin Constant ou Tabatinga, não sendo um alimento de consumo diário.

As caçadas, atividades voltadas para a subsistência, são realizadas na mata virgem, na capoeira, nos igarapés, nos igapós e nos lagos. Há as caçadas diurnas e noturnas, cujo método e período variam conforme o tipo de animal que se pretende capturar. Na terra firme prevalecem os animais de maior porte e mais difíceis de encontrar; caçam também aves e animais de pequeno porte.

A área de caça indicada fica no sentido sul do território passando o igarapé Jabuti, Tocandeira, entre o igarapé Palestina e Água Branca, próximo ao rio Jandiatuba. Pretendem inclusive abrir uma estrada para o centro para povoarem o outro lado da terra indígena, visando a ter mais espaço para plantar e criar animais.

Realizadas em pequenos grupos de três a quatro pessoas, ou mesmo individualmente, chegam a caminhar mais de cinco quilômetros sentido mata virgem, durante o dia, procurando o local mais farto para a caçada noturna. Os Kokama indicam como área de caça de animais terrestres de pequeno, de grande porte e de aves as imediações do igarapé Palestina, localizado próximo ao rio Jandiatuba. O igarapé Palestina, os igapós das imediações e os lagos da Ilha Arariá são usados para caçar tartaruga, tracajá, jacaré e aves. Na capoeira, cerca de dois quilômetros de caminhada entrando na terra indígena, caçam quinzenalmente aves, paca, tatu e cutia.

Ao ser delimitada a porção sul da Terra Indígena Sururuá garantindo a área indicada como utilizada para caça, avançamos até o igarapé Damasceno, tanto para preservar as cabeceiras dos igarapés que abastecem o rio Jandiatuba - fontes de recursos tanto para os Kokama e Ticuna, como para os animais - como para garantir uma reserva natural marcando a territorialidade e a esfera de trânsito desses animais, visando à reprodução dos mesmos, com o intuito de preservar essa fonte de subsistência para os Kokama.

e) Relações econômicas com as cidades próximas e comunidades vizinhas

As atividades dos Kokama da Terra Indígena Sururuá estão voltadas totalmente para a subsistência, dependendo essencialmente para a sobrevivência, dos recursos da floresta, dos rios, lagos e igarapés.

Há uma relação direta com as cidades próximas onde vendem produtos derivados da agricultura, da pesca e da coleta, e compram mantimentos manufaturados básicos como açúcar, café, óleo, sal, roupas, alguns medicamentos, querosene, sabão, gasolina e óleo para abastecer o motor de rabeta das canoas. Os produtos mais comercializados são a macaxeira, a banana e a farinha. Há alguns homens que também fazem canoas e negociam em Tabatinga ou Benjamin Constant e na Terra Indígena Feijoal. Realizam geralmente uma viagem por semana, principalmente para Tabatinga, para comercializar. Deve ficar claro que esse comércio está ligado ao abastecimento doméstico, com produtos utilitários e alimentares básicos. Regatões de Tabatinga, regularmente, compram bananas, verduras e macaxeira, diretamente na comunidade Nova Aliança.

Há vínculos de parentescos entre alguns moradores de Nova Aliança com Ticuna, da Terra Indígena Feijoal, bem como com outras comunidades Kokama.

IV - MEIO AMBIENTE

a) Caracterização do ambiente As áreas imprescindíveis à preservação dos recursos necessários ao bem-estar físico, econômico e cultural desse grupo, bem como a própria garantia da reprodução e da preservação dos recursos naturais fundamentais para o desenvolvimento das atividades produtivas emglobam a faixa da "beira" do rio Solimões - ou seja, a faixa marginal - e a região denominada "centro" - coberta pela mata virgem, sentido sul da terra indígena -; conseguimos assim condições de sustentabilidade da população atual e futura, bem como dos próprios recursos naturais a fim de evitar o esgotamento dos mesmos. Os padrões de ocupação da terra e a forma como utilizam os recursos nortearam a identificação dos limites; inclusive futuramente pretendem abrir um caminho e formar uma comunidade no rio Jandiatuba.

A floresta, não é um espaço internamente indiferenciado. Os moradores dessas comunidades são sensíveis às variações dos tipos de vegetação, e dividem a floresta em zonas baseadas na ação humana, das águas dos rios e igarapés e das espécies que a compõem. Entrar na floresta para o "centro", significa distanciar-se da comunidade e do rio principal sentido a um espaço conhecido apenas por caçadores e alguns coletores. É o local posterior às roças e às capoeiras, abrangendo a partir de cerca de três quilômetros da margem do rio até o limite sul da terra indígena, onde quase não teve interferência antrópica, sendo denominado como terra bruta ou mata virgem.

O padrão de ocupação está intimamente ligado à forma de utilização dos recursos naturais e o meio ambiente classificado de acordo com o conhecimento, uso, manejo e simbologia Kokama.

b) Identificação e descrição das áreas imprescindíveis à preservação dos recursos necessários ao bem estar econômico e cultural dos Kokama

Consideramos os limites propostos como áreas imprescindíveis à preservação dos recursos necessários ao bem-estar econômico e cultural dos Kokama de Nova Aliança, tendo em vista a sustentabilidade da população no momento atual e no futuro, levando em conta o crescimento populacional e eventuais chegadas de grupos domésticos como vêm ocorrendo nos últimos anos. Para identificar e definir os limites, levamos em consideração o modo de vida e de ocupação, tendo como horizonte os padrões culturais, bem como os recursos ambientais disponíveis e necessários ao bem estar do grupo.

Como são populações indígenas ribeirinhas que vivem dos recursos da floresta e dos rios, devemos assegurar a preservação desses recursos visando à garantia do seu bem-estar. Dessa forma, é essencial assegurar uma extensão de faixa marginal, tendo em vista o acesso ao rio e aos lagos, a própria formação da comunidade - cuja preferência é a "beira" - e vida cotidiana dos moradores que acontece na margem do rio Solimões, tendo também como perspectiva o aumento populacional. Estando limitada pela Terra Indígena São Leopoldo, a montante, pela comunidade não-indígena Vanguarda, a jusante, e mais ao sul, pela Terra Indígena Feijoal, reservamos uma faixa marginal possível mas que, com certeza, prevê um crescimento demográfico.

Por ser evidente a falta de espaço para o cultivo de roças, ligado diretamente à subsistência, fica patente que devemos estender os limites marginais. Pretendendo preservar uma área de caça, de reprodução e preservação dos animais, nos fundos da terra indígena, bem como uma continuidade entre as Terras Indígenas São Leopoldo, Sururuá e Feijoal, a fim de garantir a disseminação de sementes e reprodução da fauna com vistas a sustentabilidade futura dos Kokama, estendemos a terra indígena proposta até o rio Jandiatuba garantindo áreas agrícolas necessárias, a preservação dos recursos extrativistas utilizados - além da reprodução dos mesmos - e uma zona pesqueira ainda inexplorada e preservada que abastece a área de caça.

Quanto aos recursos hídricos, procuramos proteger os igarapés que utilizam no interior da terra indígena; e também, as nascentes e igarapés que abastecem o rio Jandiatuba e a área de caça dos Kokama, essas localizadas ao sul da terra indígena proposta.

V - REPRODUÇÃO FÍSICA E CULTURAL

a) Reprodução Física

A organização social dos Kokama está baseada na existência de grupos domésticos formados através de descendência bilateral, havendo a assimilação do parentesco e da descendência tanto do lado materno quanto paterno.

Com os Kokama da Terra Indígena Sururuá, percebe-se que há uma incorporação de pessoas e famílias vindas de outros locais, tanto para morar nas comunidades quanto na formalização e instituição de novas relações de afinidade; muitas vezes, essas pessoas recém-chegadas na comunidade possuem uma memória familiar que remete a um passado vinculado a uma descendência indígena cujos "pais e avós eram índios".

Ticuna e não-índios casados com os Kokama, são aceitos na comunidade e tratados como parentes. A terminologia Kokama usada para marcar a unidade da comunidade estudada, não está fundamentada somente em relações de consangüinidade, mas em relações de afinidade, compadrio, laços de solidareidade, crenças religiosas e identidade indígena que, nos últimos anos, fortalece a unidade dos seus moradores e assume cada vez maiores dimensões. O eixo dos inter-relacionamentos está, além dos sistemas de parentesco, também nas relações sociais estabelecidas e nas relações culturais - que estão vivendo nesse momento - caracterizadas pelo "resgate cultural".

A transmissão de sobrenomes configura como elemento de identidade, seja através da descendência uterina ou agnática. Independente de haver uma relação de parentesco linear ou colateral direta, os Kokama reconhecem o pertencimento ao grupo, o fato de residirem em determinada comunidade, pessoas que possuem sobrenomes como Moçambite, Pacaio, Samias, Chota, Amia, Auanari, Corintima, entre outros.

Percebe-se que a maior concentração populacional, 71,0%, está entre a população infantil, jovem e recém-casada, evidenciando um potencial crescimento populacional vigoroso, uma vez que as mulheres costumam ter filhos geralmente a partir dos 14 até os 42 anos. Há um constante crescimento populacional, além das vias naturais, por ondas migratórias de parentes de alguns moradores de Nova Aliança que residiam em outros locais também na beira do rio Solimões. São comunidades abertas à entrada de novas famílias, que possuem um padrão de deslocamento em que a família extensa permanece unida.

Entre os critérios de aceitação de novas famílias e pessoas hà a existência prévia de laços de parentesco com os moradores, o fato de pertencerem a famílias que possuem sobrenomes identificados como Kokama, conhecer elementos dessa cultura ou ter o domínio da língua indígena, possuir algum conhecido - mesmo que não tenham laços consangüíneos na comunidade -, além de fazer parte da Cruzada e demonstrar valores e comportamento coerente com esse movimento; são características básicas para se fixar definitivamente. A família recém-chegada passa por um período de avaliação, momento determinante para futura estabilidade e formação de laços no local.

Uma projeção efetiva com relação ao crescimento populacional somente pode ser feita com base nos dados atuais, pois não foi encontrado nenhum censo populacional anterior. Infere-se portanto, um crescimento populacional, vinculado também à formação de novas famílias, muito superior ao espaço disponível atualmente com relação ao padrão de ocupação dos Kokama.

b) Reprodução Cultural

A relação da comunidade de Nova Aliança com o local onde moram tem um marco cultural e simbólico ligado à cosmologia dos moradores à "cruz plantada" no centro da comunidade. Isso marca a sacralidade do local, revelando as crenças e as regras cotidianas.

Há uma dicotomia, para os moradores de Nova Aliança, entre índio civilizado e índio bravo. Kokama é índio civilizado e o índio bravo planta só o que é do mato. Nesse ponto considero haver uma forte relação com a primorosa tarefa de domesticação dos quintais e das roças, característica bem marcante dos Kokama. Ser "índio civilizado" está muito mais relacionado ao processo de adquirir conhecimento e a se tornar mais autônomo, em relação aos agentes usurpadores de suas terras e de seus direitos. Investir no cultivo, além de revelar um grande conhecimento nessa atividade, garante certa independência com relação aos centros comerciais locais. Proporciona inclusive que os Kokama participem ativamente desse processo, como compradores e, sobretudo, vendedores de produtos.

Definem-se como uma comunidade indígena que está construindo um devir comum pautado nas relações de parentesco e no vínculo estabelecido pelos cruzadores. Importante é o processo e não estar atento à modificação em relação a uma cultura anterior, mas ao significado dessas transformações para os sujeitos que a vivenciam e, nessa perspectiva, que se consolidam e se afirmam como Kokama, se organizando para lutar pelos seus direitos.

Ao estudar os Kokama na Amazônia peruana, Peter Gow (2003) mostra que passaram por uma recusa em se identificarem abertamente como Kokama, fenômeno denominado como "ex-Cocama". Então a rejeição em relação à identidade Kokama, na Amazônia peruana - durante séculos, como mostrou ao citar diversos autores -, não está atrelada essencialmente à colonização, mas a uma característica estrutural dos Kokama.

No Brasil, atualmente, os Kokama - lembrar inclusive que alguns pais de família, de Nova Aliança, migraram do Peru - refletem esse movimento de um passado próximo, percebido através da memória do ser índio - que está atrelada às lembranças relatadas acima - remetida à descendência paterna e materna, com atribuições distantes e vagas com relação a uma preocupação formal, dos pais, com a transmissão do conhecimento que os identificavam como Kokama. Provavelmente reflexo do movimento "ex-cocama", muitas vezes os pais não reforçavam a identidade indígena. No entanto, hoje, ao menos no Brasil, estão passando por um momento de "resgate do ser Kokama".

Durante os trabalhos de campo em Nova Aliança, os Kokama estão afirmando em bom tom o pertencer a um grupo indígena. Trilhando um caminho contrário aos Kokama que moram no Peru, declaram abertamente sua identidade. Os Kokama que anteriormente não proclamavam sua ascendência, agora, estão se organizando cada vez mais para poder gozar dos direitos dos povos indígenas.

Obviamente, não descartamos a abordagem de F. Barth (1998), que trabalha com a noção de grupos étnicos, cuja diferença, em relação a outros grupos, é observada na fronteira étnica e na manutenção da mesma. Entende "...que os grupos étnicos são categorias de atribuição e identificação realizadas pelos próprios atores e, assim, têm a característica de organizar a interação entre os atores" (Barth;1998:189). "Um traço fundamental...a característica da auto-atribuição ou da atribuição por outros a uma categoria étnica. Uma atribuição étnica quando classifica uma pessoa em termos de sua identidade mais geral, presumivelmente determinada por sua origem e seu meio ambiente. Na medida em que os atores usam identidades étnicas, para categorizar a si mesmos e outros, com objetivos de interação, eles formam grupos étnicos neste sentido organizacional" (Barth;1998:193/194). Os Kokama de Nova Aliança declaram-se Kokama e são identificados como tal, tanto entre si como pelos Kokama que moram em outras comunidades.

c) Identificação e descrição das áreas necessárias à reprodução física e cultural

A faixa marginal delimitada é importante tanto para a reprodução física como cultural do grupo. É o local onde colocam as roças e que, no momento, não há quase espaço para abrir novas roças o que significa que com o aumento populacional, com novos casamentos e eventuais ondas migratórias, a comunidade já não tem mais espaço para crescimento. Os locais de colocar roça estão ficando muito distantes, uma vez que estão limitados lateralmente por comunidades não-indígenas. Pretendem, futuramente, abrir um caminho em direção ao Jandiatuba para ocuparem o outro extremo da terra indígena. O local onde a cruz está plantada e a comunidade foi formada é considerado sagrado por ter sido ordenado pelo próprio Irmão José.

Delimitar em direção ao sul, significa garantir alimento e, consequentemente, a reprodução física do grupo, além de espaço para a formação de novas comunidades. Garantir as nascentes que abastecem o igarapé Tocandeira e Palestina, além de outras fontes de água, significa preservar o estoque de peixes, bem como o abastecimento dos animais que se encontram nos locais de caça. Importante pensar na caça uma vez que está havendo dificuldade em obter abundância de peixes devido às pescarias predatórias dos não-índios.

A mata, sentido centro, e o rio Solimões também são importantes referências do modo de vida dos Kokama, ambiente onde cresceram e onde sabem promover a subsistência e a organização em grupo da comunidade.

VI - LEVANTAMENTO FUNDIÁRIO

Na faixa marginal delimitada como Terra Indígena Sururuá, há as comunidades não-indígenas Bom Pastor II e Sururuá, além da propriedade de João Guedes Hayder - genro de Barnabé Chota Pissango, um dos fundadores da comunidade Sururuá.

Realizamos reuniões nas comunidades, esclarecendo sobre os procedimentos da identificação, delimitação e demarcação de terra indígena, e sobre a condução do levantamento fundiário. Esclarecemos tanto os direitos das populações indígenas, quanto dos não-índios; informamos e distribuímos o Decreto nº 1.775 e as portarias que nos indicavam para a realização do trabalho.

Fizemos reuniões, nos dias 5 e 7 de julho, nas comunidades Sururuá e Bom Pastor II que não aceitaram a realização do levantamento fundiário. Na comunidade Bom Pastor II, durante as reuniões, ninguém se identificou como indígena, mas no dia 10 de julho quando passamos para pegar o documento dos moradores confirmando não permitirem a realização do levantamento fundiário, dois moradores vieram conversar dizendo que eram de família Ticuna e Kokama, respectivamente; Alcemi Araújo Moraes e Clandira Iumbato Geisse. Somente Maria Oliveira Tiota (esposa de João Guedes Hayder e filha de Barnabé Chota Pissango, da comunidade Sururuá) e João Guedes Hayder, aceitaram realizar o levantamento fundiário em sua propriedade.

Essas comunidades também são formadas por ribeirinhos, que praticamente vivem dos recursos do rio e da floresta.

VII - CONCLUSÃO E DELIMITAÇÃO

Concluímos que a terra indígena identificada e delimitada, de acordo com os estudos realizados, é caracterizada como terra tradicionalmente ocupada pela comunidade indígena Nova Aliança, constituindo uma unidade social que satisfaz os preceitos constitucionais do § 1º do Artigo 231 da Constituição Federal de 1988, sendo assegurada a terra identificada e delimitada ser de ocupação permanente, utilizada para as atividades produtivas do grupo, imprescindíveis a preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e à reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

A terra indígena identificada e delimitada é ocupada em caráter permanente pelo grupo indígena Kokama, sendo necessário garantir para sua reprodução física e cultural, para a realização das atividades produtivas e para preservação dos recursos naturais imprescindíveis ao bem estar desse grupo, o território proposto; uma vez que não dispõem de terra suficiente para o cultivo de produtos - realizado principalmente na "beira" do rio Solimões, isto é, logo após as comunidades, pois se colocassem as roças mais para dentro da mata virgem as condições de acesso seriam praticamente inviáveis - visando ao provimento familiar; necessitam garantir as nascentes de água - situadas principalmente ao sul da terra indígena - que abastecem os igarapés de pequeno e médio porte localizados nas imediações e nos limites dessa terra indígena, com vistas inclusive para o estoque de peixes e as reservas de caça - alternativa alimentar, encontrada principalmente nos fundos dessa terra indígena - que utilizam essas águas para sobreviver. Dessa forma, assegura-se a própria dinâmica e manejo dos recursos naturais, tendo como horizonte tanto a preservação dos mesmos como a reprodução física e cultural do grupo. Caracterizam-se por viverem essencialmente dos recursos do rio e da floresta, cuja importância dos produtos coletados em todo território è fundamental para a construção das casas, das canoas, confecção de artefatos, extração de remédios naturais, entre outros usos, práticos e simbólicos.

Estender o território no sentido mata virgem - direção sul - favorece o acesso ao rio Jandiatuba, importante recurso hídrico e, segundo intenções dos moradores de Nova Aliança, onde pretendem formar uma comunidade futuramente; e também, a continuidade, ao menos na porção sul, das Terras Indígenas São Leopoldo, Sururuá e Feijoal.

Assegurar uma extensão possível de faixa marginal - da Terra Indígena São Leopoldo a comunidade não-indígena Vanguarda - permitirá acesso ao rio e aos lagos, formar novas comunidades - constituídas sempre na beira -, prevendo aumento populacional contato com demais comunidades e estabelecimento de comércio com outras localidades. Essa faixa propiciará novas e essenciais áreas de cultivo, no momento, insuficientes, visando a sustentabilidade atual e futura dos Kokama; além de resguardar o marco simbólico e sagrado, local onde está "plantada" a Cruz, na comunidade Nova Aliança. O fato de "plantarem" a cruz fortalece essa ligação com a terra, que germina e alimenta, tanto no sentido pragmático como simbólico.

A definição dos limites levou em consideração o atendimento básico dos dispositivos constitucionais e os limites das terras indígenas Ticuna, e a partir daí, também a condição das comunidades ribeirinhas vizinhas, com o objetivo de compatibilizar os interesses, quando possível, na tentativa de visualizar a situação fundiária local.

PRISCILA MATTA

Antropóloga-coordenadora

DESCRIÇÃO DO PERÍMETRO

NORTE: partindo do Marco SAT-01, de coordenadas geográficas 04º22'07,442"S e 69º38'27,210"WGr., localizado na confluência do Igarapé Jabuti com o Rio Solimões, segue pela citada margem, a jusante até o Ponto-01, de coordenadas geográficas aproximadas 04º20'25,2"S e 69º36'09,0"WGr., localizado na margem do Rio Solimões. LESTE: do ponto antes descrito, segue por uma linha reta até o Marco M-09, de coordenadas geográficas 04º25'26,546"S e 69º30'04,533"WGr., localizado em uma linha reta; daí, segue por esta linha reta até o Marco M-08, de coordenadas geográficas 04º25'31,202"S e 69º29'46,206" WGr.; daí, segue por uma linha reta até o Ponto D-05, de coordenadas geográficas 04º25'57,542"S e 69º29'21,572"WGr., localizado na margem direita de um Igarapé sem Denominação; daí segue pelo referido igarapé, a jusante, até o Ponto D-04, de coordenadas geográficas 04º28'24,549"S e 69º27'16,926"WGr., localizado na confluência do Igarapé Trunfo-é-Pau com um Igarapé sem Denominação; daí, segue pelo referido igarapé, a jusante, até o Ponto D-03, de coordenadas geográficas 04º28'46,153"S e 69º26'04,700"WGr., localizado na confluência do Igarapé Trunfo-é-Pau com o Rio Jandiatuba (Do ponto Marco M-09 ao Ponto D-03 confronta-se com a Terra Indígena Feijoal). SUL: do ponto antes descrito segue pelo referido rio, a montante, até o Ponto-02, de coordenadas geográficas aproximadas 04º35'56,4722"S e 69º30'36,2209"WGr., localizado na confluência do Rio Jandiatuba com o Igarapé Damasceno. OESTE: do ponto antes descrito segue pelo referido igarapé até o Ponto-03, de coordenadas geográficas 04º33'21,8978"S e 69º35'53,0952"WGr., localizado no divisor de águas; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-21, de coordenadas geográficas 04º33'03,524"S e 69º35'15,626"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-20 de coordenadas geográficas 04º32'20,196"S e 69º35'08,988"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-19, de coordenadas geográficas 04º32'15,399"S e 69º36'10,688"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-18, de coordenadas geográficas 04º31'49,610"S e 69º36'53,641"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-17, de coordenadas geográficas 04º31'48,752"S e 69º37'55,570"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-16, de coordenadas geográficas 04º31'48,513"S e 69º39'00,376"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-15, de coordenadas geográficas 04º31'04,902"S e 69º38'35,755"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-14, de coordenadas geográficas 04º30'15,891"S e 69º38'10,044"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-13, de coordenadas geográficas 04º30'15,008"S e 69º37'36,572"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-12, de coordenadas geográficas 04º30'16,048"S e 69º36'47,004"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-11, de coordenadas geográficas 04º30'32,346"S e 69º37'20,780"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-10, de coordenadas geográficas 04º30'57,179"S e 69º36'56,769"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-09, de coordenadas geográficas 04º30'20,487"S e 69º36'13,816"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-08, de coordenadas geográficas 04º29'36,974"S e 69º35'45,456"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-07, de coordenadas geográficas 04º29'09,112"S e 69º36'05,423"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-06, de coordenadas geográficas 04º29'10,696"S e 69º36'32,737"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-05, de coordenadas geográficas 04º28'22,166"S e 69º36'20,453"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-04, de coordenadas geográficas 04º27'29,320"S e 69º36'07,865"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-03, de coordenadas geográficas 04º27'26,660"S e 69º36'16,181"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-02 de coordenadas geográficas 04º26'38,131"S e 69º36'16,181"WGr.; daí, segue pelo divisor de águas até o Marco M-01, de coordenadas geográficas 04º25'37,728"S e 69º36'20,682"WGr., localizado na cabeceira do Igarapé Jabuti, daí, segue pelo referido igarapé, a jusante, até o Marco SAT-01, início da descrição deste perímetro (Do Marco M-21 ao Marco SAT-01 confronta-se com a Terra Indígena São Leopoldo). OBS: 1 - Base Cartográfica utilizada na elaboração deste memorial: SB.19-V-B - RADAM - 1978 - Escala 1:250.000. 2 - As coordenadas geográficas citadas neste memorial descritivo são referenciadas ao Datum horizontal SAD-69. Responsável Técnico pela Identificação dos Limites: Reginaldo de Oliveira Carvalho, Engenheiro Agrimensor, CREA nº 71.729/D - MG.