Despacho FUNAI nº 21 de 08/05/2008
Norma Federal - Publicado no DO em 12 mai 2008
Aprova as conclusões objeto do citado resumo para afinal, reconhece os estudos de identificação da Terra Indígena ARARY de ocupação do grupo tribal Mura, localizada nos municípios de Borba e Novo Aripuanã, Estado do Amazonas.
O PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI, tendo em vista o que consta no Processo FUNAI/BSB/1875/1992, e considerando o Resumo do Relatório de Identificação, de autoria dos antropólogos Marianna Assunção Figueiredo Holanda e Fernando de La Rocque Couto que acolhe, face às razões e justificativas apresentadas, decide:
1. Aprovar as conclusões objeto do citado resumo para afinal, reconhecer os estudos de identificação da Terra Indígena ARARY de ocupação do grupo tribal Mura, localizada nos municípios de Borba e Novo Aripuanã, Estado do Amazonas.
2. Determinar a publicação no Diário Oficial da União e Diário Oficial do Estado do Amazonas, do Resumo do Relatório Circunstanciado, Memorial Descritivo, Mapa e Despacho, na conformidade do § 7º do art. 2º do Decreto nº 1.775/1996.
3. Determinar que a publicação referida no item acima, seja afixada nas sedes das Prefeituras Municipais da situação do imóvel.
MÁRCIO AUGUSTO FREITAS DE MEIRA
ANEXORESUMO DO RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO DE IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DA TERRA INDÍGENA ARARY
Referência: Processo FUNAI/BSB/1.875/1992. Denominação:
Terra Indígena Arary. Localização: Municípios de Novo Aripuanã e Borba, Estado do Amazonas. Superfície: 40.750 ha. Perímetro: 114km Sociedade Indígena: Mura. Família Lingüística: Mura. População:
200 pessoas (2002). Identificação e delimitação: Grupo Técnico constituído pela Portaria nº 053/PRES, de 16 de janeiro de 1997, coordenado pela antropóloga Adriana Romano Athila.
I - DADOS GERAIS
A TI Arary localiza-se entre os igarapés Miracetuba e Aranaquara, tendo ao fundo o rio Autaz-Mirim, limitada pela frente, com a margem esquerda do rio Madeira, possuindo as seguintes coordenadas geográficas: ao extremo Norte, latitude 04º36'45'' S, longitude 60º02'35'' Wgr; ao extremo Leste, latitude 04º48'48'' S, longitude 59º54'55'' Wgr; ao extremo Sul, latitude 04º53'47'' S, longitude 60º03'11'' Wgr; ao extremo Oeste latitude 03º40'22'' S, longitude 60º07'56'' Wgr, nos Municípios de Novo Aripuanã e Borba, Estado do Amazonas. A AER na qual increve-se é a de Manaus e o Posto Indígena mais próximo é o PIV Kwatá, com sede na cidade de Nova Olinda do Norte. A via de acesso à TI Arary é exclusivamente fluvial.
O grupo indígena é de etnia Mura e assim se autodenominam.
Os Mura, em contato há mais de dois séculos com a sociedade envolvente, não falam sua língua de forma sistemática, presente na lembrança de alguns indivíduos mais velhos. Segundo a classificação de Loukotka, a língua Mura, ao lado da Bohurá ou Buxwaray, Pirahã e Yaháhi, pertence ao tronco Mura e seria falada originalmente nos rios Manicoré e Mataurá, mais tarde nos rios Paraná do Mamori e Tefé, no lago do Saracó e em outras partes do estado do Amazonas. A língua Bohurá, segundo Nimuendajú, aparece como autodenominação dos Mura, seria falada no rio Autaz. A língua Mura, onde incluem-se os Matanawi, é considerada por Loukotka como um tronco sul-americano independente do Mura, e o Mura-Pirahã.
No período colonial, a imposição do Nheengatu ou Língua Geral, de origem Tupi, conhecida como a língua do contato e obrigatória para a conversão religiosa indígena, contribuiu, entre outros fatores, para que a língua Mura fosse gradativamente abandonada. A permanência, no final do século XX, do Nheengatu como língua oficial dos índios em regiões como a do médio e alto Rio Negro é considerada como fenômeno que se presta à marcação de fronteiras étnicas entre grupos em contato e como diacrítico da indianidade.
Alvo de esbulhos e exploração de seus recursos e gentes desde a segunda década do século XX, a TI Arary apresenta algumas particularidades quanto à questão das migrações. Esta condição não é exclusiva daquela TI, integrando um movimento institucionalizado e marcado temporalmente de tentativas e, neste caso, efetivações de posse de muitos outros territórios indígenas no estado do Amazonas e Território do Acre e, notadamente, de terras pertencentes aos Mura.
Desta forma, qualquer nexo encontrado em seus padrões migratórios e limites destas migrações, não poderia ser dissociado destas mesmas condições que fizeram a história de ocupação da TI Arary.
Para uma exposição breve, temos que, no início do século XX, os Mura da aldeia Arary, como os da aldeia Setemã, aldeia Aranaquara e aldeia Jacaré, todas elas devidamente documentadas pelo Serviço de Proteção aos Índios/SPI trabalhavam para o comerciante Augusto Costa, que ocupava ou arrendava uma faixa de terra à margem direita do rio Madeira, contígua ao lote demarcado pelo SPI e denominado Setemã. Anos mais tarde, em paralelo à ampliação de relações semi-escravas de trabalho, agressões mas também compadrio e reciprocidade perversos, seu genro, Luiz José Soares, procede à tentativa de usurpar muito mais que uma faixa de terra.
A TI Arary é ainda, destino comum dos Mura expulsos da TI Setemã e da antiga aldeia Aranaquara, segundo um mecanismo cultural migratório que caracteriza esta etnia.
II - HABITAÇÃO PERMANENTE
Os Mura e, entre eles, os que habitam a TI Arary, dispõem suas casas em barrancos à beira de rios, lagos e igarapés, definidos pelos índios como a frente da terra. O que consideram fundo da área é, via de regra, tido como menos habitado em caráter permanente e no caso da TI Arary, observa-se que este interior é extremamente explorado pelos Mura, contendo, além de inúmeros castanhais nativos e áreas de caça, lagos e igarapés fundamentais à pesca, tida como uma atividade central.
As habitações Mura apresentam características semelhantes às dos regionais que, em contrapartida, adquiriram os ditames da arquitetura indígena nos tantos séculos de contato, especialmente nas regiões alagáveis amazônicas. Pode-se dizer, entretanto, que as casas Mura apresentam um certo padrão, tanto estético e de composição de habitantes, quanto no que concerne à sua disposição pelo território indígena, que acaba por diferenciá-las das regionais. Dividem seu espaço em dois cômodos, com paredes feitas em trançado de palha e assoalho suspenso feito em madeiras como a paxiúba, açaí e marupá.
Raras, há casas com paredes em tábuas de madeira. Contudo, nenhuma construções excede este número de cômodos. A cobertura das casas é sempre em palha. O espaço semelhante a uma espécie de sala é, em geral, fechado em uma só parede de fibra trançada, podendo apresentar um ou mais bancos de madeira bruta, dependendo do tamanho da casa. O outro cômodo assemelha-se a um dormitório, onde penduram as redes em que dormem e guardam os poucos pertences.
Este pode ou não ser fechado. No espaço localizado abaixo da casa suspensa, criam galinhas. A cozinha, um pequeno jirau sem cobertura, fica adjacente a esta construção maior, na parte dos fundos da casa. As casas de farinha, quando existentes, ficam ainda mais para o considerado fundo da área. Pequenas casinhas são construídas com forquilhas em madeira e cobertura de palha, a fim de armazenar alguma mandioca.
Estas construções, no caso da TI Arary, abrigam famílias ainda nucleares pela pouca idade dos filhos, portanto não aptos ao casamento, e famílias extensas. Esta última modalidade parece constituir uma tendência cultural geral para os Mura, exceto nos casos em que os filhos praticam casamento interétnico. Pode-se observar a existência de casas de estrutura mais primária do que as observadas na frente da TI, espécies de barracões, localizados nos limites propostos e interiores à terra, onde permanecem, às vezes, por dias, na coleta da castanha ou temporariamente para plantio ou coleta de produtos silvestres. As plantações, variando entre um e dois hectares por grupo familiar, bem como a extração de castanha, podem também ser feitas ao longo da área, em lugares considerados menos habitados, uma vez que a distância entre os mesmos e as casas é relativamente grande. Ainda assim, a predominância é de que os castanhais estejam sempre mais para o interior da área, lugar chamado pelos Mura de centro. O padrão Mura de ocupação foi classificado como errante, desde tempos remotos, e esta característica perdurou por todos depoimentos dos séculos XVIII e XIX. Apesar das discussões em torno do que poderiam representar as observações destes depoentes do passado, os Mura foram caracterizados muito mais como moradores de suas embarcações do que de residências fixas.
III - ATIVIDADES PRODUTIVAS
III.1- Caça e pesca: não foram raras as menções à importância da pesca tanto para a subsistência quanto para a reprodução cultural dos Mura. A característica pesqueira continua marcando seu modo de vida, como visto, à beira de rios, lagos e igarapés, ambiente que dominam e por onde pescam e espalham suas moradias. Atualmente os Mura têm na pesca sua principal atividade e fonte de proteína animal. Os instrumentos empregados nas pescarias são, em acordo com a observação e o depoimento dos próprios índios, a flecha, anzol, arpão. A malhadeira não é utilizada pelos Mura da TI Arary, ocorrência também minoritária em outras TIs Mura. Devemos apontar, entretanto, que o uso deste último instrumento por parte de não-índios que invadem a área fixa ou eventualmente é considerado como o responsável pela diminuição da piscosidade dos igarapés e lagos inscritos na TI.
Desta forma, os Mura pescam pelas margens dos igarapés e lagos formados pelos mesmos, inscritos na proposta de delimitação da TI, como o lago Grande e igarapé da Tiririca e, notadamente, no igarapé e no lago denominados Arari. Este último é apontado como dos mais piscosos. Registramos, entretanto, o fato de não-índios virem pescar na região, fato ao qual atribuem a diminuição da piscosidade de seus mananciais. Conflitos entre pescadores comerciais e moradores tradicionais de lagos e igarapés, que têm na pesca objetivo de subsistência, são bastante comuns na região amazônica.
Os locais mais abundantes em peixe são os igapós, importante reduto para que diversas espécies realizem incursões para desova e engorda, especialmente as cabeceiras dos igarapés. Os homens de cada unidade familiar pescam predominantemente nos lagos mais próximos de sua habitação, com a observação de que todos os grupamentos populacionais utilizam para pesca o igarapé Arari. Igarapés e rios mais afastados da área de habitação comunitária podem ser usados eventualmente, geralmente situados no interior da TI, como é o caso do igarapé da Tiririca, evitando que áreas de pesca sejam excessivamente compartilhadas. Nimuendajú registra uma organização para a pesca semelhante a encontrada atualmente, quando os Mura chefes de família possuíam áreas pesqueiras próprias, veementemente defendidas de outros grupos familiares. Apenas extraordinariamente o produto da pesca é comercializado pelos Mura da TI Arary, destinando-se quase que exclusivamente a seu consumo.
A caça é tida como uma atividade que exige mais habilidade por parte de quem a pratica. Prática também tradicional dos Mura, contam muitas histórias que falam de "donos" da caça. Os Mura da TI Arary praticam a caça com alguma regularidade, sendo as espécies mais comuns a anta, paca, cutia, caititu e, esporadicamente, veados.
Dificilmente encontram-se animais aquáticos como a lontra ou o peixe-boi, segundo os índios, bastante abundantes no passado. Quelônios como o tracajá e o matamatá são mais raros atualmente, aparecendo durante a estação seca.
III.2 - Agricultura, coleta e extrativismo: a agricultura, segundo os relatos históricos, foi pouco praticada pelos Mura, chegando mesmo a figurar como prática ausente de suas atividades produtivas.
Não seriam presos à terra, circulando por rios e igarapés, a bordo de suas canoas, pescando e aportando para a realização de caça e coleta de frutos nativos. Ao lado destas constatações, múltiplos relatos indicavam a mandioca como o principal vegetal de sua dieta, com a qual fabricavam farinha. Outros relatos informam que índios Mura de algumas regiões tinham plantio de mandioca nas porções de terra firme sugere que fatos como a posse de instrumentos e técnicas para produzir farinha e a presença de cerimônias como as do Jará, feita com o objetivo de aumentar a safra da mandioca, atestariam sua familiaridade com o tubérculo e sua preparação.
A coleta de frutos estabeleceu-se também como prática tradicional de subsistência. As frutíferas eram sazonalmente coletadas, retiradas de diversas regiões e ambientes, em acordo com o conhecimento íntimo das épocas propícias para a frutificação de cada espécie em particular. Ao referirem-se às áreas nas quais a mandioca é cultivada, os Mura as chamam invariavelmente de roça. A roça é, portanto, sinônimo de plantação de maniva. Enquanto o cultivo de outros produtos agrícolas ocupa no máximo um hectare, por onde todos eles encontram-se dispersos, em geral a plantação de mandioca extende-se, sozinha, por mais um hectare. Com ela fazem a farinha, que constitui uma das bases de sua alimentação.
Observa-se que a farinha e principalmente a castanha funcionariam como verdadeiras moedas na TI Arary como em outras TIs Mura. São comercializadas quando há demanda de produtos aos quais não têm acesso, seja para alimentação, vestuário ou medicação. Quanto à farinha, a maioria das famílias extensas, que podem ocupar mais de uma casa, possui casa de farinha. Desta forma, a mandioca brava é produto agrícola e alimentar básico, sendo plantada pelos Mura desde que se teve conhecimento desta etnia.
III.3 - Criação de animais: não criam gado bovino ou de qualquer outro tipo, o que demonstra-se também inviável na sua configuração territorial atual. Criam galinhas, exclusivamente para consumo da carne e ovos e povoam a parte de baixo dos assoalhos suspensos das casas. Sua carne e seus ovos, entretanto, jamais foram citados, de pronto, como alimentos rotineiros e não foi observado, à nossa estada, qualquer tipo de carne nas refeições que não fosse principalmente peixe ou alguma caça.
IV - MEIO AMBIENTE
Em áreas como as banhadas por rios, igarapés e lagos de água preta, como é o caso de parte significativa da TI Arary, esta proporção pode ficar ainda mais desequilibrada devido às condições adversas do solo. A conseqüência disso é uma redução ainda maior do número de indivíduos por espécie vegetal, com predominância de espécies aparentemente mais adaptadas à característica oligotrófica do ambiente. Portanto, fica estabelecido para regiões banhadas por rios e lagos de água preta, a presença de uma menor quantidade de espécies vegetais do que em áreas com maior fertilidade em nutrientes.
Rios e lagos de água preta, como é o caso da TI Arary, foram analisados a partir de abordagens bastante diferenciadas, uma vez que apresentam um leque de características peculiares e não-observáveis em outras regiões amazônicas. Os solos argilo-arenosos, extremamente ácidos e com uma saturação de alumínio que alcança níveis tóxicos, vêm a determinar a especificidade das regiões atravessadas por estes rios, particularmente sua notável deficiência de nutrientes.
Embora banhada em sua margem pelas águas brancas do rio Madeira, o que significaria de um modo geral uma maior concentração de nutrientes, observamos que a TI Arary é drenada internamente por uma série de rios, igarapés e lagos de água-preta. Tais ambientes são os freqüentemente utilizados pelos Mura em sua atividade pesqueira. Os produtivos igapós apresentam-se em minoria, se analisamos a composição mista do ecossistema encontrado na TI Arary, predominantemente constituído por área de várzea.
As florestas pluviais do trópico úmido, em geral, apresentam grande diversidade biológica, embora concentrem apenas um pequeno número de indivíduos por espécie em uma dada área. O número de espécies vegetais encontrado por hectare pode ser, exageradamente, de até 600, sendo a média mais comum situada no intervalo entre 80-200 espécies/hectare. Apesar disso, muitas destas espécies têm somente um indivíduo como seu representante em cada hectare. A manutenção de diversas espécies depende diretamente da amplitude das áreas conservadas, sendo necessárias porções consideráveis de terra para que seja garantido um número mínimo de indivíduos por espécie.
Em termos de produtos agrícolas, a mandioca tem seu cultivo apropriado aos solos pobres e ácidos, apresentando também excelente estratégia nestas áreas, produzindo boas safras. Este fator é de suma importância para os Mura da TI Arary, como para os das demais TIs, que têm sua alimentação baseada neste tubérculo e em peixes. Segundo Moran, vegetais como o feijão e o milho são inadequados à cultura em áreas deficientes em nutrientes, cultivados apenas em pequena quantidade. Desta forma, para que fossem cultivados com sucesso, deveriam ser plantados próximos às terras firmes, no que estão os Mura da TI Arary, limitados pela ocupação indevida de supostos herdeiros indiretos de Nena Freitas e uma série de outros indivíduos afins ou aliados destes afins que, portanto, sequer possuem vínculos com quaisquer destes ditos herdeiros.
V - REPRODUÇÃO FÍSICA E CULTURAL
Para efeitos de possíveis comparações entre levantamentos populacionais, não foi apurado, a partir dos depoimentos recebidos, qualquer fator desequilibrante das taxas de mortalidade, ao menos nos últimos dez anos. De acordo com estes mesmos depoimentos, há cerca de cinqüenta anos atrás uma epidemia devastadora os teria atingido. Não há consenso - ao mesmo tempo em que inexistem dados oficiais específicos, se tal epidemia seria atribuída ao sarampo ou o que chamaram tosse de guariba.
Segundo registros do SPI daquela mesma época, o surto palúdico ocorrido no ano de 1941, vindo já de certo tempo, mantinha-se agudo e com conseqüências desastrosas. As epidemias de febres malignas teriam feito numerosas vítimas e a região de Autazes estaria imersa em verdadeiro pauperismo e devastação. No mesmo ano, o inspetor Carlos Augusto Chauvin, denuncia o estado de inanição dos trabalhadores indígenas, infestados por verminoses e tomados de febres de todos os gêneros. Alterando suas estratégias tradicionais de subsistência e passando a habitar em territórios restritos e conseqüentemente limitados em recursos naturais essenciais à sua sobrevivência, estas populações tornam-se alvos vulneráveis e mais frágeis a patologias de qualquer ordem. Desta forma, os impactos desta situação sobre as condições de saúde dos indígenas, não raro, são negativos.
Para os Mura, especialmente, esta gradativa limitação de seus territórios e/ou sua divisão com civilizados foi decisiva tanto para sua usurpação, como tentamos demonstrar, quanto para a manutenção de sua estratégia tradicional de subsistência, a partir de então, modificada. Vimos por todo o presente relatório, que os mesmos circulam constantemente por suas terras, aproveitando recursos dispersos em seus lagos, igarapés, igapós e nas terras firmes incluindo, ainda, viagens a outras TIs Mura. O processo oficioso de encolhimento das terras circuláveis pela ocupação de não-índios teve, então, resultados análogos aos muitas vezes proporcionados pelo loteamento oficial realizado pelo SPI: perda de seus territórios tradicionais - como é o caso da TI Setemã, da TI Fortaleza do Castanho e da antiga aldeia Aranaquara - ou insuficiência e/ou esgotamento de recursos essenciais à sua reprodução física e cultural.
Acompanhando o movimento de notável recuperação demográfica das populações indígenas a partir da década de 80, a população Mura vêm aumentando significativamente, provavelmente em proporção significativamente superior à observada entre a população brasileira. Desta forma, à despeito do número significativo de migrações que tendem a caracterizar áreas em situação fundiária instável que soma-se à mortalidade no que concerne à diminuição populacional, observamos que em 1982 os Mura da TI Arary somavam 129 indivíduos, em 1997, 175 indivíduos e em 2002 já constituíam uma população de 200 indivíduos.
VI - LEVANTA MENTO FUNDIÁRIO
Como pontuado por todo o relatório, o único título definitivo incidente sobre os limites da TI Arary é aquele que por herança informal pertenceu ao chamado Nena Freitas e a seus colaterais e descendentes. Confirmando a história oral Mura sobre a ocupação de seu território, apurado em levantamento cartorial na Comarca de Borba que, originalmente, este título pertencera ao chamado coronel Soares.
O esbulho de terras indígenas era prática comum no estado do Amazonas e território do Acre nas primeiras décadas do século XX, quanto a atitude de Soares dirigiu-se a todas as povoações Mura desta região do rio Madeira, a saber, Arary, Aranaquara, Setemã e Jacaré. Tamanha violência e ilegitimidade, contudo, não ocorrera sem a conivência de autoridades militares e, provavelmente, judiciais. A política de arrendamento, a conivência ou a coincidência entre autoridades policiais, jurídicas e da instituição tutelar e usurpadores, juntaram-se à falta de assistência sistemática a estas populações, selando a perda de seus territórios. Territórios estes, onde por muitas vezes mantiveram-se, com a condição de neles trabalharem para outrem ou serem privados de explorá-los em sua íntegra.
Observou-se, ainda, que alguns titulares de posses cadastradas pelo INCRA, todas sem certidão negativa da FUNAI-, não seriam mais do que parentes afins dos mesmos Freitas. Um deles, apesar de casado com uma mulher da família Freitas, afirma ainda ter comprado o terreno de Lourivaldo Guerreiro. A razão disto encontra-se, provavelmente, no objetivo de recebimento quiçá de indenizações diferenciadas. Desta forma, a localização de todas estas ocupações é a margem esquerda do rio Madeira, entre os igarapés Aranaquara e Arary, conforme dita o título definitivo original. Dos nove ocupantes não-índios registrados pelos LVAs, pelo menos sete enquadram-se comprovadamente na situação de parentes dos freitas. Dos dois restantes, um deles não é ocupante primário do imóvel e ambos os lotes situam-se após o igarapé Arary, seguindo-se o curso do rio Madeira e, portanto, fora das terras compreendidas pelo título de Lourivaldo Guerreiro.
Tendo-se em mente este mapa de ocupação e o fato de não haver partilha judicial de qualquer porção de terra. Desta forma, a grande maioria dos não-índios que hoje ocupam a margem esquerda do rio Madeira, no tocante ao título definitivo de Lourivaldo Guerreiro, não são mais do que seus "supostos" herdeiros. Com a morte do titular, várias gerações, linhagens e seus respectivos afins foram instalando-se na área, e hoje, através de um processo de loteamento paralelo, mantém-se na região de habitação tradicional dos Mura.
Sejam ou não herdeiros legítimos de um título secundário, a origem deste mesmo título é comprovadamente ilícita, já que advém da compra de um título primário originado em um ato de usurpação violento e indevido. De qualquer forma, todos estes indivíduos, apesar de pequenos produtores, frisa-se, ao ocuparem a terra e utilizaremse de seus recursos naturais, o fazem em detrimento das condições de reprodução física e cultural dos Mura da TI Arary, habitantes tradicionais daquele território, anteriormente ainda ao dito coronel Soares.
Os dados sobre as ocupações não indígenas seguem a distribuição:
nome do ocupante; denominação do imóvel, e; área incidente na TI Arary em hectares, sendo possível não constar estimativa na atualização do levantamento fundiário. 1) Dilma Freitas de Almeida, sem denominação, 15 ha; 2) Elvira Guerreiro de Freitas, Santa Rita, 564 ha; 3) Gelson Freitas de Almeida, Santa Rita, 20 ha; 4) Jorge de Lima Teixeira, Campinho; 5) Maria Freitas da Costa, Rosa Maria; 6) Maria Pereira da Silva, São João, 100ha; 7) Nazareno de Freitas dos Santos, sem denominação; 8) Orlando Oliveira Souza, Boa Esperança, 200 ha; 9) Paulo Freitas de Almeida, Sítio Tapuru, 25 ha; 10) Paulo Monteiro de Almeida, São Paulo, 400 ha; 11) Paulo Monteiro de Almeida, Aranaquara, 460 ha; 12) Raimundo Nazareno F. de Freitas, sem denominação; 13) Sérgio Freitas de Almeida, sem denominação, 20 ha; 14) Tarcílio Vieira Cavalcante, Cabral, 564 ha.
VII - CONCLUSÃO E DELIMITAÇÃO
A proposta de delimitação da TI Arary é fruto de acurados estudos realizados in loco que indicam ser a área proposta a minimamente necessária à manutenção da organização sócio-cultural Mura. O relatório comprova a tradição histórica da etnia Mura e sua tortuosa existência nas décadas que vararam os séculos XX e XXI, apontando a TI Arary e a região do rio Madeira, que abriga ainda outras TIs Mura, como lugar imemorialmente ocupado por aqueles índios e via de acesso a outras Terras Indígenas pertencentes à citada etnia. A TI Arary tem ainda importância referencial para os Mura da TI Setemã e para os antigos habitantes das aldeias Jacaré e Aranaquara, usurpadas no início do século XX e que aí passam a residir.
Relembramos também, a extensão outrora ocupada pela etnia em questão, que, após a perda mesmo de lotes demarcados pelo SPI, encontra-se hoje limitada pela presença de não-índios em muitos de seus territórios. Desta forma, a TI Arary, como as demais TIs ocupadas pela etnia Mura, representa um referencial étnico, cultural e territorial fundamental, o que comprova-se tanto pela história oral recolhida entre estes índios, quanto por relatos de regionais e pela documentação do SPI e da FUNAI.
Fator preponderante nas alterações de sua estratégia tradicional de subsistência são as limitações ou mesmo o impedimento na exploração de recursos naturais, o que fica caracterizado pelas restrições à sua circulação e a imposição da presença de não-índios que desempenham atividades de cultivo, caça, pesca, extração de castanha e de outros frutos silvestres e mesmo de madeiras.Para tanto, foi realizado trabalho de campo com fim de levantar as várias esferas da vida Mura na ocupação de sua terra, com observação e inquéritos sobre atividades produtivas, histórias de vida, a fundação de seu território e de sua configuração espacial, mitos e dificuldades encontradas na área. A indicação de limites para a TI Arary procurou ainda levar em consideração as linhas naturais e sua relação com a distribuição habitacional dos Mura.
O esbulho territorial sofrido pelos Mura em mais de dois séculos de contato com os brancos vai de encontro à tradição cultural e histórica de uma etnia que aguarda com urgência a regularização de seu direito imemorial e constitucional, proposta desde o início do século XX.
A situação fundiária atual da TI Arary é, desta forma, resultado daquela citada conivência perversa, que privou-os e a seus ascendentes, não apenas de territórios, mas do direito constitucional à sua adequada reprodução física e cultural. Espera-se, finalmente, que a aprovação dos limites aqui indicados possa inaugurar o processo demarcatório da TI Arary, conforme o inciso I, § 10º do art. 2º do Decreto 1.775, de 8 de janeiro de 1996. A determinação de sua demarcação é concebida como solução única para que se faça valer a imprescritibilidade do direito dos Mura sobre sua terra, conforme o disposto no § 4º do Art.231 da atual Constituição Federal, já que as disposições do Art.25 da Lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973, se demonstraram por si só ineficazes para a garantia da posse efetiva e permanente dos territórios por eles tradicionalmente habitados.
Adriana Romano Athila Antropóloga-coordenadora do GT 53/97
Fernando de La Rocque Couto Antropólogo-consultor PNUD
DESCRIÇÃO DO PERÍMETRO
NORTE: Partindo do Ponto 01 de coordenadas geográficas aproximadas 04º39'50"S e 60º07'29"Wgr., localizado na confluência do Igarapé Canário com o Rio Autaz-Mirim, segue por este, a jusante, até o Ponto 02 de coordenadas geográficas aproximadas 04º36'55"S e 60º01'21"Wgr., localizado na confluência com o Igarapé Januí. LESTE/SUL: Do ponto antes descrito, segue pelo Igarapé Januí, a montante, até o Ponto 03 de coordenadas geográficas aproximadas 04º41'11"S e 59º59'48"Wgr., localizado em sua cabeceira; daí, segue por uma linha reta até o Ponto 04 de coordenadas geográficas aproximadas 04º42'48"S e 59º58'43"Wgr., localizado na cabeceira do Igarapé Miracetuba; daí, segue por este, a jusante, até o Ponto 05 de coordenadas geográficas aproximadas 04º43'20"S e 59º56'55"Wgr., localizado na confluência com o Rio Madeira; daí, segue por este, a montante, até o Ponto 06 de coordenadas geográficas aproximadas 04º53'47"S e 60º03'05"Wgr., localizado na confluência com o Igarapé Aranaquara. OESTE: Do ponto antes descrito, segue pelo Igarapé Aranaquara, a montante, até o Ponto 07 de coordenadas geográficas aproximadas 04º49'30"S e 60º03'50"Wgr., localizado em sua cabeceira; daí, segue por uma linha reta até o Ponto 08 de coordenadas geográficas aproximadas 04º47'34"S e 60º06'38"Wgr., localizado na cabeceira do Igarapé do Tucunaré; daí, segue por este, a jusante, até o Ponto 09 de coordenadas geográficas aproximadas 04º46'21"S e 60º06'32"Wgr., localizado na confluência com um igarapé sem denominação; daí, segue por uma linha reta até o Ponto 10 de coordenadas geográficas aproximadas 04º45'04"S e 60º06'45"Wgr., localizado na cabeceira do Igarapé Canário; daí, segue por este, a jusante, até o Ponto 01, início da descrição deste perímetro.
OBS: Base cartográfica utilizada na elaboração deste memorial descritivo: SB.21-V-A-IV e SB.20-X-B-VI - Escala 1:100.000. IBGE 1985/1988. Responsável Técnico Identificação dos Limites: Sebastião Carlos Baptista, Engenheiro Agrimensor, CREA-SP 7741/D.