Despacho FUNAI nº 20 de 08/05/2008

Norma Federal - Publicado no DO em 12 mai 2008

Aprova as conclusões objeto do citado resumo para afinal, reconhecer os estudos de identificação da Terra Indígena SETEMÃ de ocupação do grupo tribal Mura, localizada nos municípios de Borba e Novo Aripuanã, Estado do Amazonas.

O PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI, tendo em vista o que consta no Processo FUNAI/BSB/1877/1992, e considerando o Resumo do Relatório de Identificação, de autoria dos antropólogos Adriana Romano Athila e Fernando de La Rocque Couto que acolhe, face às razões e justificativas apresentadas, decide:

1. Aprovar as conclusões objeto do citado resumo para afinal, reconhecer os estudos de identificação da Terra Indígena SETEMÃ de ocupação do grupo tribal Mura, localizada nos municípios de Borba e Novo Aripuanã, Estado do Amazonas.

2. Determinar a publicação no Diário Oficial da União e Diário Oficial do Estado do Amazonas, do Resumo do Relatório Circunstanciado, Memorial Descritivo, Mapa e Despacho, na conformidade do § 7º do art. 2º do Decreto nº 1.775/1996.

3. Determinar que a publicação referida no item acima, seja afixada nas sedes das Prefeituras Municipais da situação do imóvel.

ANEXO
RESUMO DO RELATÓRIO DE IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DA TERRA INDÍGENA SETEMÃ

Referência: Processo FUNAI/BSB/1877/92. Terra Indígena: Setemã. Localização: Municípios de Novo Aripuanã e Borba, Estado do Amazonas. Superfície: 49.340 ha. Perímetro: 125 km. Sociedade Indígena: Mura. Família Lingüística: Mura. População: 143 pessoas (2002). Identificação e delimitação: Grupo Técnico constituído pela Portaria nº 053/PRES, de 16 de janeiro de 1997, coordenado pela antropóloga Adriana Romano Athila.

ESCLARECIMENTOS

O Relatório ora resumido é produto integrante de um estudo antropológico maior para a identificação e delimitação de nove terras indígenas pertencentes ao grupo indígena Mura, situadas no Município de Careiro/AM e indicadas segundo determinação da portaria de constituição do grupo técnico de identificação e delimitação tendo como integrantes uma antropóloga-coordenadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, uma bióloga, colaboradora, lotada no INPA/AM, um engenheiro agrônomo lotado na AER de Manaus, um engenheiro agrimensor de lotação idêntica e um técnico agrícola, colaborador, lotado no IFAM/AM. Os trabalhos do GT 53/PRES/97 alcançaram um total de 53 dias, tendo sido gastos 30 dias em trabalho de campo e o restante em gabinete. O barco utilizado pelos membros do GT nas suas visitas pertencia ao Conselho Indígena Mura/CIM. Conforme determinação da Portaria nº 702/PRES/02, o GT retornou à TI no período de 23 a 19 de julho de 2002. Os objetivos eram a complementação dos estudos de identificação, bem como o reestudo da proposta de delimitação, visando contemplar um acréscimo significativo à área, demandado por parte dos índios.

A configuração atual da TI Setemã alterou-se sensivelmente, quando muitos Mura retornaram de Borba, juntando-se a seus parentes que lá ficaram. Desta forma, o Relatório leva em consideração não apenas os limites apontados pelos índios, mas também seu domínio e uso deste ambiente, bem como as ocupações territoriais sugeridas pelas histórias contadas pelo grupo indígena em questão e a partir de fontes documentais, avaliando em que medida tais indicações contemplavam suas necessidades físicas, demográficas e culturais. Portanto a participação dos Mura foi fundamental neste estudo, atendendo ao disposto no § 3º do art. 2º, Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996.

I - PARTE: DADOS GERAIS

A TI Setemã possui uma superfície de aproximadamente 49.340 ha. As coordenadas geográficas são: ao extremo norte, latitude 04º52'06'' S, longitude 59º56'35'' Wgr; ao extremo leste, latitude 04º52'06'' S, longitude 59º56'35'' Wgr; ao extremo sul, latitude 05º06'26'' S, longitude 60º09'43'' Wgr; ao extremo oeste latitude 04º59'30'' S, longitude 60º10'20'' Wgr. Limita-se, pela frente, com a margem direita do rio Madeira, entre o igarapé Marajá Grande e a confluência do igarapé do Jacaré e seu paraná com a margem direita do rio Madeira. A via de acesso à TI é exclusivamente fluvial.

Os Mura, em um contato com a sociedade regional que soma mais de duzentos anos, não falam sua língua de forma sistemática, presente na lembrança de alguns indivíduos mais velhos. A língua Mura, ao lado da Bohurá ou Buxwaray, Pirahã e Yaháhi, pertence ao tronco Mura, onde incluem-se o Matanawi como um tronco sulamericano independente do Mura, e o Mura-Pirahã.

No período colonial, a imposição do Nheengatu ou Língua Geral, de origem Tupi, conhecido como a língua do contato e obrigatória para a conversão religiosa indígena, contribuiu, entre outros fatores, para que a língua Mura fosse gradativamente abandonada. Castigos dos mais severos eram aplicados aos índios que se negassem a utilizá-la, insistindo na manutenção de suas línguas maternas. Posteriormente, seu uso foi oficialmente proibido durante o período pombalino, a partir de 1759, quando é expulsa do Brasil a Companhia de Jesus. Ainda assim, na segunda metade do mesmo século XVIII era mais usada pelos colonos do que o próprio Português. No início do século XIX, a Língua Geral adquire o sentido nacionalista do movimento cabano, no qual os Mura tiveram participação marcante ao lado de índios de outras etnias, mestiços, negros e uma minoria de brancos, os únicos que dominariam o Português. A Língua Geral era a língua oficial da Cabanagem. A reação ao movimento determinou perseguições ferrenhas a seus participantes até fins do século XIX, causando imensas baixas populacionais.

Os Mura não teriam, contudo, abandonado sua língua ao menos até o início do século XX, apesar de comumente usarem uma mistura de Português e Nheengatu. A Língua Geral estaria sempre em maior evidência, prioritariamente utilizada no contato com os brancos, sendo progressivamente substituída pelo Português.

A permanência, no final do século XX, do Nheengatu como língua oficial dos índios em regiões como a do médio e alto rio Negro, é considerada como fenômeno que se presta à marcação de fronteiras étnicas entre grupos em contato e como diacrítico da indianidade. A pressão do contato nestes séculos transformou os Mura, que originalmente apresentavam-se às frentes atrativas acompanhados por intérpretes cativos de outras etnias indígenas que dominavam o Mura e a Língua Geral.

De um modo geral, todas as referências oficiais a estes índios, mais pareciam sentenças de integração repletas de piedade. Sua manutenção como grupo já estava desacreditada desde o final do século XVIII, vista não só como causa do contato mas antes por uma certa crença em sua "natureza desfavorável". Mesmo para os etnólogos, costumeiramente cercados de etnografias muitas vezes impressionantes, os Mura pareceriam, a um primeiro contato, caboclos como quaisquer outros da região.

II - PARTE: HABITAÇÃO PERMANENTE

A TI é formada e coincidente com uma única aldeia denominada Setemã, sendo sua população atual de 143 habitantes. Os Mura e, entre eles, os que habitam a TI Setemã, dispõem suas casas em barrancos à beira de rios, lagos e igarapés, definidos pelos índios como a frente da terra. O que consideram "fundo" da área é, via de regra, tido como menos habitado em caráter permanente. As habitações Mura apresentam características semelhantes às dos regionais que, em contrapartida, adquiriram os ditames da arquitetura indígena nos tantos séculos de contato, especialmente nas regiões alagáveis amazônicas. Pode-se dizer, entretanto, que as casas Mura apresentam um certo padrão, tanto estético e de composição de habitantes, quanto no que concerne à sua disposição pelo território indígena, que acaba por diferenciá-las das regionais. Dividem seu espaço em dois cômodos, com paredes feitas em trançado de palha e assoalho suspenso feito em madeiras como a paxiúba, açaí e marupá. Raras, há casas com paredes em tábuas de madeira. Contudo, nenhuma construção excede este número de cômodos. A cobertura das casas é sempre em palha.

O espaço semelhante a uma espécie de sala é, em geral, fechado em uma só parede de fibra trançada, podendo apresentar um ou mais bancos de madeira bruta, dependendo do tamanho da casa. O outro cômodo assemelha-se a um dormitório, onde penduram as redes em que dormem e guardam os poucos pertences. Este pode ou não ser fechado. No espaço localizado abaixo da casa suspensa, criam galinhas. A cozinha, um pequeno jirau sem cobertura, fica adjacente a esta construção maior, na parte dos fundos da casa. As casas de farinha, quando existentes, ficam ainda mais para o considerado fundo da área. Pequenas casinhas são construídas com forquilhas em madeira e cobertura de palha, a fim de armazenar alguma mandioca.

Estas construções, no caso da TI Setemã, abrigam famílias ainda nucleares pela pouca idade dos filhos, portanto não aptos ao casamento, e famílias extensas. Esta última modalidade parece constituir uma tendência cultural geral para os Mura, exceto nos casos em que os filhos praticam casamento interétnico. Tal tendência foi depreendida e é também praticada em outras TI Mura, onde se pôde constatar a ausência de casais mistos morando com pais Mura, enquanto foram observados diversos casais Mura, habitando na casa dos pais, em geral, obedecendo à regra de residência uxorilocal. Pode-se observar a existência de casas de estrutura mais primária do que as observadas na frente da TI, espécies de barracões, localizados nos limites propostos e interiores à terra, onde permanecem, às vezes, por dias, na coleta da castanha ou temporariamente para plantio ou coleta de produtos silvestres.

As plantações, variando entre um e dois hectares por grupo familiar, bem como a extração de castanha, podem também ser feitas ao longo da área, em lugares considerados menos habitados, uma vez que a distância entre os mesmos e as casas é relativamente grande. Ainda assim, a predominância é de que os castanhais estejam sempre mais para o interior da área, lugar chamado pelos Mura de centro.

Segundo depoimentos dos Mura aos membros do GT, os agrupamentos populacionais da TI Setemã localizaram-se sempre nas margens do rio Madeira, como no entorno dos lagos inscritos na área proposta. Entretanto, com base nestes mesmos depoimentos, depreende-se que no passado, havia uma tendência maior em estabelecerem suas habitações em localidades mais internas à área, provavelmente devido ao estado de usurpação e ocupação por não-índios em que a mesma se encontrava. Permaneciam, contudo, em torno principalmente de lagos, utilizados até hoje para pesca ou acesso aos castanhais nativos. Neste sentido, pudemos levantar, a partir das histórias de vida, a transferência de muitos Mura para a margem do rio Madeira, a partir dos lagos Jacaré, Arú e Setemã, por motivos vários, como por exemplo, a morte de algum parente.

III - PARTE: ATIVIDADES PRODUTIVAS

Os Mura da TI Setemã encontram-se sujeitos a algumas limitações que atingem significativamente suas atividades tradicionais de subsistência. Atestamos a coabitação de não-índios em duas casas próximas ao igarapé Marajá-Grande, das quais uma delas localiza-se exatamente na boca deste igarapé e a outra um pouco depois deste ponto, em outras duas casas próximas ao igarapé Setemã e, por último, em uma casa localizada nas imediações do casarão antes pertencente ao coronel Soares, habitada por Lucas e sua família e constituindo a ocupação mais significativa no que tange ao constrangimento de suas atividades produtivas.

A extração de castanha constitui uma atividade central para os Mura da TI Setemã, que a praticam no inverno amazônico. Dominam completamente o emaranhado de pontos, braços maiores e menores dos castanhais que exploram, descrevendo pormenorizadamente, seus nomes e localização. Neste sentido, uma informação fundamental é a de que todos os castanhais que usam, como faziam seus ascendentes, são nativos.

No verão amazônico plantam roça (mandioca brava) e, eventualmente, cortam estradas para a extração de seringa. Para sua subsistência, servem-se basicamente das árvores frutíferas situadas nas porções de terra disponibilizadas à exploração e cultivo e da mandioca brava, com a qual fazem a farinha e beijus, amplamente consumidos em sua dieta, ao lado do peixe.

CAÇA E PESCA

A característica pesqueira continua marcando seu modo de vida, como visto, à beira de rios, lagos e igarapés, ambiente que dominam e por onde pescam e espalham suas moradias. Atualmente os Mura têm na pesca sua principal atividade e fonte de proteína animal. Os instrumentos empregados nas pescarias são, em acordo com a observação e o depoimento dos próprios índios, a flecha, anzol, arpão e, em alguns casos, a malhadeira. Os Mura pescam pelas margens dos igarapés e lagos formados pelos mesmos, inscritos na proposta de delimitação da TI, como o Jacaré, Arú, Setemã e, notadamente, no igarapé e no lago denominados Marajá-Grande. Este último é apontado como dos mais piscosos. Registramos, entretanto, o fato de não-índios virem pescar na região. Esta ocorrência parece ser bastante comum, como pudemos testemunhar, inclusive, para o caso do igarapé Marajá-Grande, onde encontramos indivíduos com grandes caixas de isopor incursionando pelo igarapé, em direção ao lago de mesmo nome.

Os Mura da TI Setemã praticam a caça com alguma regularidade, sendo as espécies mais comuns a anta, paca, cutia, caititu e, esporadicamente, veado. Dificilmente encontram-se animais aquáticos como a lontra ou o peixe-boi, segundo os índios, bastante abundantes no passado. Quelônios como a tartaruga, o tracajá, bodó e cuiu-cuiu também são mais raros atualmente, aparecendo durante a estação seca.

AGRICULTURA, COLETA E EXTRATIVISMO

A agricultura, segundo os relatos históricos, foi pouco praticada pelos Mura, chegando mesmo a figurar como prática ausente de suas atividades produtivas. Não seriam presos à terra, circulando por rios e igarapés, a bordo de suas canoas, pescando e aportando para a realização de caça e coleta de frutos nativos. Ao lado destas constatações, múltiplos relatos indicavam a mandioca como o principal vegetal de sua dieta, com a qual fabricavam farinha. Os Mura da TI Setemã vivem uma particularidade adicional com relação aos produtos cultiváveis. Queixam-se de que muitos cultivos não poderiam ser realizados por causa da circulação do gado bovino criados por Lucas, o citado não-índio que habita a TI. Por este motivo, as fruteiras mantidas à frente de suas casas são todas cercadas. O feijão dizem não plantar porque só poderiam fazê-lo longe de suas casas para evitar invasão daqueles mesmos animais.

É comum que as áreas cultivadas sejam também sítio de castanhais nativos, como é o caso do lago do Arú, de água preta. Os Mura habitantes da ilha do Jacaré, alguns dos quais habitavam antigamente no igarapé Setemã, lá mantiveram muitos de seus cultivos. Na própria ilha cultivam apenas melancia, banana e a mandioca brava. Ao referirem-se às áreas nas quais a mandioca é cultivada, os Mura as chamam invariavelmente de roça. A roça é, portanto, sinônimo de plantação de maniva. Enquanto o cultivo de outros produtos agrícolas ocupa no máximo um hectare, por onde todos eles encontram-se dispersos, em geral a plantação de mandioca estende-se, sozinha, por mais um hectare. Com ela fazem a farinha, que constitui uma das bases de sua alimentação.

Observamos que a farinha e principalmente a castanha funcionariam como verdadeiras moedas na TI Setemã como em outras TIs Mura. São comercializadas quando há demanda de produtos aos quais os índios não têm acesso, seja para alimentação, vestuário ou medicação.

Os Mura da TI Setemã têm verdadeiro apreço pelos múltiplos castanhais inclusos em sua área, todos eles nativos e acerca dos quais possuem um conhecimento detalhado, incluindo histórias às quais atribuem seus nomes. Explorados há muitas gerações de Muras, os inúmeros pontos, braços e lugares nos quais os subdividem são explorados por cada família. Contudo, cada qual domina inteiramente a localização, distribuição, denominação e vias de acesso a todos eles. Durante a época da coleta, chegam a ficar uma ou duas semanas em barracões situados na região destes castanhais.

CRIAÇÃO DE ANIMAIS

Os índios criam galinhas, exclusivamente para consumo da carne e ovos e povoam a parte de baixo dos assoalhos suspensos das casas. Sua carne e seus ovos, entretanto, jamais foram citados, de pronto, como alimentos rotineiros e não foi observado, à nossa estada, qualquer tipo de carne nas refeições que não fosse de peixe ou alguma caça. Em duas casas criam porcos. Há ainda, alguns animais de estimação, como cachorros, pássaros de variadas espécies e também dois filhotes de macacobarrigudo. Tais animais, entretanto, não são considerados comestíveis.

IV - PARTE: MEIO AMBIENTE

As características ecológicas gerais de regiões como as encontradas na TI Setemã, que guarda uma tipologia ambiental mista, são: terra firme, várzea baixa e igapó, sendo banhada em parte pelas águas brancas do rio Madeira e drenada significativamente por diversos rios e lagos de água-preta. Uma vez que demonstramos ser a pesca atividade fundamental dos Mura e sabendo que a mesma é totalmente desempenhada nos rios e lagos internos à TI, este último ecossistema passa a concentrar maior interesse para nosso estudo.

Desta forma, veremos que os fatores que caracterizam esta tipologia ambiental guardam uma profunda relação com as estratégias tradicionais de subsistência Mura e as circunstâncias atuais vividas por estes índios. Nossa intenção aqui é expor a relação entre a disponibilidade de recursos encontrada na citada TI e o uso destes recursos segundo o padrão Mura de atividades produtivas. Se, por um lado, temos a noção da complexidade de fatores e possibilidades de conjugação entre estes tipos de ecossistemas, procuramos, por outro, sublinhar os caracteres desfavoráveis de alguns deles, se tomamos como referência o padrão Mura de atividades produtivas.

O que se pode reter em termos de ocupação humana neste tipo de ambiente é que são recomendáveis pequenas povoações, evitando-se tanto a atuação de missionários quanto o estabelecimento de postos da FUNAI. Para a TI Setemã pode-se dizer que as invasões fixas representariam um peso populacional não desejado em áreas deste tipo. Quanto às invasões eventuais, teriam um status semelhante, sobrecarregando a escassa disponibilidade de recursos naturais e ainda, no caso da extração comercial de madeiras, contribuindo significativamente para o desmatamento e suas conseqüências, especialmente quando estão em questão áreas de difícil recuperação.

V - PARTE: REPRODUÇÃO FÍSICA ECULTURAL

No censo realizado por Nimuendajú, em 1926, a partir dos dados recolhidos em 26 grupos por ele visitados, as terras Mura tinham em média 53 pessoas e a sua amplitude populacional variava entre 15 e 120 pessoas. O resultado parcial, levando-se em consideração as 6 TI visitadas pelo GT 53, apresenta uma média de 77 pessoas por terra considerada e variação da amplitude populacional entre 15 e 188 pessoas. Este dado pode ser interessante se pensarmos, no futuro, em atestar uma certa dinâmica populacional Mura.

Enquanto isso, um dado estimado é que crianças nascem em uma média de 5 para cada mulher em idade fértil, embora não possamos saber quantas teriam nascido e morrido, o que só seria possível, como já foi dito, se houvesse dados longitudinais seguros e disponíveis. Da mesma forma, só poderemos saber quantas desta média de cinco virão a sobreviver se forem feitos os acompanhamentos futuros. Outro dado é que a invasão das TI altera significativamente a taxa usual de migração.

Estratégia fundamental de sobrevivência em ambientes oligotróficos, como se caracterizou parte da TI em questão, é a conservação da densidade demográfica e a dispersão populacional a fim de que mantenha-se a saúde da população e do ambiente da área considerada, evitando-se sua conseqüente degradação. Portanto, um aumento populacional acima das taxas típicas e a concentração de habitantes em uma mesma região adquirem conseqüências negativas para o ambiente e para as populações que habitam áreas deste tipo. Pode-se dizer que tais fatores encontram-se diretamente relacionados à presença de invasores nas terras indígenas, pois, em termos pragmáticos, estes representam um acréscimo populacional e uma maior concentração nestas áreas, que passam a explorar indevidamente ao mesmo tempo em que o fazem seus habitantes tradicionais.

Maior agravamento das conseqüências desta presença dá-se quando levamos em consideração o fato de que sofrem restrições e proibições que, como procuramos demonstrar, incidem diretamente sobre as estratégias de subsistência desta população indígena. O impedimento que sofrem em sua livre circulação pelo território e no cultivo de certos produtos fornece-nos exemplo mais do que suficiente na comprovação do caráter nocivo daquelas invasões. Tais prejuízos ocorrem independente do caráter fixo ou eventual das mesmas e, ainda, independente de possuírem ou não lastro documental.

VI - PARTE: LEVANTA MENTO FUNDIÁRIO

O principal título definitivo incidente sobre os limites da TI

Setemã é o denominado fazenda Vista Alegre, de propriedade atual da Empresa Plantec S.A. Florestamento e Reflorestamento. O conjunto de lotes que integra a chamada fazenda Vista Alegre foram todos vendidos diretamente pelos herdeiros do coronel Soares, a quem pertenciam os títulos e registros primários destes mesmos terrenos.

Observa-se que a extensão destes domínios principalmente a castanhais utilizados pelos mesmos há muitas gerações, muitos deles não contemplados pela política de "lotes" praticada pelo SPI. Conforme demonstrado, não apenas o esbulho de terras indígenas era prática comum no estado do Amazonas e território do Acre nas primeiras décadas do século XX, quanto a atitude de "Soares" dirigiuse às demais aldeias Mura desta mesma região do rio Madeira, a saber, Arary, Aranaquara, Setemã e Jacaré.

A TI Setemã é exemplar deste processo histórico de expropriação de territórios indígenas, onde atuou um comerciante ambicioso com a conivência de forças policiais e, provavelmente, de autoridades jurídicas. A este respeito, poderíamos observar que a TI Setemã é de ocupação Mura ao menos desde o ano de 1925, quando temos a primeira tentativa documentada de usurpação da mesma por parte do coronel Soares. Esta comprovação documental, contudo, não significa que não estivesse ocupada pelos Mura muito antes desta data.

A política de arrendamento, a conivência ou a coincidência entre autoridades policiais, jurídicas e da instituição tutelar e usurpadores, juntaram-se à falta de assistência sistemática a estas populações selando a perda de seus territórios. Territórios estes, onde por muitas vezes mantiveram-se, com a condição de neles trabalharem para outrem ou serem privados de explorá-los em sua íntegra. Em paralelo a esta situação, os Mura convivem ainda com posseiros, alguns parentes entre si. Todos são pequenos produtores que, ao ocuparem a terra e utilizarem-se de seus recursos naturais, o fazem em detrimento das condições de reprodução física e cultural daqueles índios. Os dados sobre as ocupações não indígenas seguem a distribuição: nome do ocupante; denominação do imóvel, e; área incidente na TI Setemã em hectares, sendo possível não constar estimativa na atualização do levantamento fundiário. 1) Newton Coutinho Filho, Vista Alegre, 19.494 ha; 2) Maria do Rosário Lobo Nascimento, Macuranim do Marajá Grande, 300 ha; 3) Rosane Lobo do Nascimento, Marajá Grande, 300 ha; 4) João Rodrigues Magalhães, Sítio Altamira, 32 ha; 5) Raimunda Costa Brandão, Boa Lembrança, 36 ha; 6) Luiz Ferreira Queiroz, Vista Alegre; 7) Antônia Maria das Graças Monte-Verde e Silva, sem denominação.

VII - PARTE: CONCLUSÃO E PROPOSTA DE DELIMITAÇÃO

A proposta de delimitação da TI Setemã é fruto de acurados estudos realizados in loco que indicam ser a área proposta a minimamente necessária à manutenção da organização sócio-cultural Mura.

O presente relatório comprova a tradição histórica da etnia Mura, apontando a TI Setemã e a região do rio Madeira, que abriga ainda outras TI Mura, como lugar imemorialmente ocupado por aqueles índios e via de acesso a outras Terras Indígenas pertencentes à citada etnia. A TI Setemã tem ainda importância referencial para os Mura da TI Arary e para os antigos habitantes das aldeias Jacaré e Aranaquara, usurpadas no início do século XX. Relembramos também, a extensão outrora ocupada pela etnia em questão, que, após a perda mesmo de "lotes" demarcados pelo SPI, encontra-se hoje limitada pela presença de não-índios em muitos de seus territórios.

A TI Setemã representa um referencial étnico, cultural e territorial fundamental, o que comprova-se tanto pela história oral recolhida entre estes índios, quanto por relatos de regionais e pela documentação do SPI e da FUNAI. O GT/Portaria nº 53/PRES/97 procurou avaliar em que medida o território era, de fato, utilizado por estes índios e em que medida não o faziam devido principalmente às proibições e ameaças impostas por não-índios indevidamente assentados na região. Fator preponderante nas alterações de sua estratégia tradicional de subsistência são as limitações ou mesmo o impedimento na exploração de recursos naturais, o que fica caracterizado pelas restrições à sua circulação e a imposição da presença de nãoíndios que desempenham atividades de cultivo, caça, pesca, extração de castanha e de outros frutos silvestres e mesmo de madeiras.

A indicação de limites para a TI Setemã procurou ainda levar em consideração as linhas naturais e sua relação com a distribuição habitacional dos Mura incluindo os locais fundamentais ao desenvolvimento de suas atividades produtivas, especialmente da coleta da castanha e da pesca, que acontece no decorrer dos igarapés e lagos inscritos na terra, respeitando o disposto no § 1º do art. 231 da atual Constituição Federal. Foi preocupação fundamental na elaboração da proposta uma delimitação que garantisse a integridade territorial da espoliada etnia Mura, de modo que tais limites, fossem eles naturais ou não, proporcionassem, tanto quanto possível, o impedimento de invasões fixas ou eventuais que vêm minando a disponibilidade de recursos essenciais à sua reprodução física e cultural.

A proposta de limites ora indicados para a TI Setemã, conforme o inciso I, § 10 do art. 2º do Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996. A determinação de sua demarcação é concebida como solução única para que se faça valer a imprescritibilidade do direito dos Mura sobre sua terra, conforme o disposto no § 4º do art. 231 da atual Constituição Federal, já que as disposições do art. 25 da Lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973 se demonstraram por si só ineficazes para a garantia da posse efetiva e permanente dos territórios por eles tradicionalmente habitados.

Adriana Romano Athila Antropóloga-coordenadora do GT 53/97Fernando de La Rocque Couto Antroplólogo-consultor PNUD

DESCRIÇÃO DO PERÍMETRO

Gleba Setemã - Superfície: 48.134 ha (quarenta e oito mil, cento e trinta e quatro hectares) aproximadamente, Perímetro: 109 Km (cento e nove quilômetros) aproximadamente. NORTE: partindo do Ponto 01, de coordenadas geográficas aproximadas 04º59'14" S e 60º13'22" Wgr, localizado na confluência do Igarapé Cutia com o Lago Lagoa Grande, segue pela margem sul do referido lago até o Ponto 02, de coordenadas geográficas aproximadas 04º58'15" S e 60º11'49" Wgr; daí, segue por uma linha reta até o Ponto 03, de coordenadas geográficas aproximadas 04º58'02" S e 60º11'38" Wgr, localizado na margem do Lago Marajá Grande; daí, segue contornando ao norte do referido lago até o Ponto 04, de coordenadas geográficas aproximadas 04º56'26" S e 60º09'09" Wgr, localizado na confluência do Igarapé Marajá; daí, segue por este a jusante até o Ponto 05, de coordenadas geográficas aproximadas 04º55'35" S e 60º07'01" Wgr, localizado na confluência com o Rio Madeira; daí, segue por este a jusante até o Ponto 06, de coordenadas geográficas aproximadas 04º52'06" S e 59º56'35" Wgr, localizado na confluência do Igarapé do Jacaré. LESTE: do ponto antes descrito, segue pelo Igarapé do Jacaré, a montante até o Ponto 07, de coordenadas geográficas aproximadas 05º01'11" S e 60º01'08" Wgr, localizado em sua cabeceira; daí, segue por uma linha reta até o Ponto 08, de coordenadas geográficas aproximadas 05º03'19" S e 60º01'08" Wgr, localizado na cabeceira do Igarapé Taboca; daí, segue por uma linha reta até o Ponto 09, de coordenadas geográficas aproximadas 05º06'15" S e 60º02'10" Wgr. SUL: do ponto antes descrito, segue por uma linha reta até o Ponto 10, de coordenadas geográficas aproximadas 05º06'26" S e 60º09'43" Wgr, localizado no Rio Aracu. OESTE: do ponto antes descrito, segue pelo rio Aracu a jusante, até o Ponto 11, de coordenadas geográficas aproximadas 05º08'24" S e 60º11'20" Wgr; localizado na confluência de um igarapé sem denominação; daí, segue por este, a montante, até o Ponto 12, de coordenadas geográficas aproximadas 05º06'28" S e 60º12'37" Wgr; localizado em sua cabeceira; daí, segue por uma linha reta até o Ponto 13, de coordenadas geográficas aproximadas 05º01'25" S e 60º12'43" Wgr; localizado na cabeceira do Igarapé Cutia; daí, segue por este até o Ponto 01, início da descrição do perímetro. Gleba Ilha do Jacaré - Superfície: 1.206 ha (um mil, duzentos e seis hectares) aproximadamente, Perímetro: 16 Km (dezesseis quilômetros) aproximadamente. NORTE: partindo do Ponto 01, de coordenadas geográficas aproximadas 04º51'54" S e 59º58'09" Wgr, localizado na margem direita do rio Madeira; daí, segue por este a jusante até o Ponto 02, de coordenadas geográficas aproximadas 04º49'44" S e 59º54'59" Wgr, localizado na confluência do Paraná do Jacaré. SUL: do ponto antes descrito segue pelo Paraná do Jacaré no sentido montante até o Ponto 01, inicial da descrição deste perímetro. OBS: 1) Base cartográfica utilizada na elaboração deste memorial descritivo: SB.21-V-A-IV, SB.20-X-B-VI e SB.20-X-D-III - Escala 1:100.000 - IBGE - 1985/1988. 2) As coordenadas geográficas que constam neste memorial estão referenciadas ao Datum Horizontal SAD-69. Responsável Técnico pela Identificação dos Limites: Sebastião Carlos Baptista, Engenheiro Agrimensor, CREA-SP 7741/D.